No século XVII, o senhor Descartes descobriu aquilo que haveria de ser o fundamento da ciência moderna, dizem. E formulou essa descoberta da forma mais simples que foi capaz de encontrar: "Penso, logo existo". Fórmula mais simples e com ainda maiores repercussões na ciência só a de Einstein: E=mc².
Com a sua fórmula, Descartes diz-nos muito simplesmente que é suficiente pensar para existir e que é necessário existir para pensar. Mas não nos diz que seja suficiente existir para pensar, nem que seja necessário pensar para existir. Segundo ele, portanto é possível existir e não pensar. Chegou a esta conclusão porque a primeira certeza que encontrou foi a de que pensava. Tivesse sido essa certeza a de que arrotava, ou cuspia para o chão, ou palitava os dentes e a sua fórmula teria sido "arroto, logo existo", "cuspo para o chão, logo existo" ou "palito os dentes, logo existo". Seria igualmente suficiente arrotar, cuspir para o chão ou palitar os dentes para existir, e seria necessário existir para arrotar, cuspir para o chão ou palitar os dentes. Talvez assim tivesse chegado à conclusão de que a única certeza que temos é a de que vivemos, muito mais do que a de que morreremos, porque esta se projeta no futuro como uma forte probabilidade, e a primeira se aplica ao presente, como um dado certo (veja-se a brilhante demonstração de Ortega y Gasset).
Tivesse ele chegado à conclusão, portanto, de que "bocejo, logo existo" e o mundo teria sido outro, talvez mais justo e menos empedernido. Talvez alguém, entretanto, tivesse compreendido também que "pago, logo existo". Assim sendo, pagar seria suficiente para existir, e existir seria necessário para pagar. E estava tudo bem.
Só que - o diabo tece-as, não haja dúvidas - o "melhor povo do mundo" descobriu, através de uma reportagem da TVI, que não é necessário existir para pagar. Embora nada seja dito quanto a que seja suficiente pagar para existir, a verdade é que só um tolo se daria ao trabalho de existir para pagar, sendo-lhe possível pagar sem existir. É rigorosamente isto que acontece a uma série de Fundações em Portugal. Não existem, mas pagam salários (alguns muito bons, que só quem não existe pode pagar sem tremer), sendo que algumas até pagam TSU e até veriam reduzido este seu contributo, não fosse o povo ter saído para a rua para comprar sardinhas e alguém não tivesse dito que estavam ali porque não estava pelos ajustes. Imaginem só o que seria o nosso mundo se Descartes tivesse afirmado que para pensar não é necessário existir. Que haja quem exista e não pense, isso já toda a gente sabia no seu tempo, tal como agora; mas haver quem pense sem existir, isso sim teria sido uma revolução.
Pois bem, o povo português não é só o "melhor povo do mundo", é também o povo mais filósofo do Universo. Não fosse ele dado a fazer filosofia em verso, como Fernando Pessoa e outros, ou em prosa poética, fosse ele dado ao vazio analítico dos ingleses, ou à violência hermenêutica dos alemães e todo o mundo se ajoelharia perante a sua sabedoria. Pagar não existindo é qualquer coisa.
Não fosse eu português, limitado sobre este assunto a não ultrapassar duas ou três quadras, talvez meia dúzia, e escreveria um tratado mais complexo e mais longo do que a obra completa de Kant.
É que as coisas não ficam por aqui: aquilo mesmo que não existe, mas paga, não existindo, vai ser extinto. Oh sublime povo este que percebe tudo e se limita a fazer versos. Não fosse esse o seu destino, o de fazer versos, e mandava que os que não existem pagassem a crise.
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