segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

COMENTÁRIOS E CRÍTICAS AO DEC-LEI SOBRE EDUCAÇÃO ESPECIAL E SOBRE O GOVERNO DAS ESCOLAS

OS SEMI-DEUSES SÃO O DIABO. FILHOS DE UM DEUS E DE UMA GALDÉRIA TERRÁQUEA NÃO SE CANSAM DE MOSTRAR OS MÚSCULOS E DE BRANDIR A ESPADA À ESQUERDA E À DIREITA, COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ. NINGUÉM OS PÁRA. A SUA POPULARIDADE VEM DE SEREM IMPOPULARES; EXIGEM ADORAÇÃO, VENERAÇÃO, MAS DESPREZAM OS QUE LHES FAZEM A VONTADE. SÃO O DIABO....

O Dec-Lei nº 319 (aquele que, desde 1991 regulava o apoio a alunos com NEE e que foi agora revogado) era um dispositivo legal que respondia de forma inovadora aos desafios que eram colocados na época em que foi criado. Tinha em conta a realidade do seu tempo e as perspectivas técnicas e científicas mais actuais.
A usura e as alterações inevitáveis da vida em sociedade desgastaram-no; era urgente reformular um conjunto muito vasto de conceitos nele explicitados, e sobretudo alterar significativamente muitos dos procedimentos que o hábito transformara em processos burocráticos sem qualquer sentido. Na Administração da Educação, surgiram duas grandes tendências: a que pretendia melhorar a burocracia, porque a qualidade dos procedimentos seria sempre fugidia ao seu gosto e competência para encontrar em simples papéis, relatórios, etc., tudo o que seria necessário para o desempenho eficaz das suas responsabilidades; e a que pretendia corrigir procedimentos e integrar efectivamente o apoio a todos os alunos num programa de intervenção global da escola, porque não acreditavam que melhorar uma burocracia sem sentido pudesse ser uma boa solução para dar um significado novo à acção da escola.
A primeira tendência, a dos burocratas que não sentem necessidade de perceber nada a respeito da educação, da educação especial e de educação inclusiva, que sentem uma necessidade compulsiva de reduzir as acções educativa a grelhas e a outros instrumentos mais ou menos infantilóides, ganhou. O Dec-Lei nº 3/2008 satisfaz todas as suas necessidades: já podem tranquilamente visitar as escolas e garantir com toda a autoridade, mesmo sem saber nada daquilo sobre que falam, que não são 20 os alunos a apoiar, mas 6 ou 7. Estão felizes. Era este o seu principal objectivo, e não foi em vão que lutaram por ele.
O problema é que isto resolve o problema da Administração da Educação e dos seus elementos menos bem formados, mas não resolve nem se aproxima sequer da solução dos problemas das escolas. Dá competência a quem não a tem, nem a quer ter, porque é possível controlar as opções das escolas a partir de uma base de dados. Em boa verdade, qualquer computador pode fazer o trabalho de verificar se o aluno A ou B foi devidamente integrado no sistema de apoio especializado.
De facto, o Dec-Lei anterior (o tal 319) correspondia, digamos assim, a pneus novos em folha, de grande qualidade, os melhores do seu tempo; o carro podia, então, percorrer caminhos difíceis, cheios de buracos e de surpresas inesperadas: os pneus eram bons. O uso e os maus tratos gastaram esses pneus; agora são pneus carecas, que derrapam à mais pequena contrariedade. E o que fizeram os senhores condutores? Trocaram pneus novos de qualidade, carecas mas de qualidade, por pneus recauchutados sem qualquer valor. Temporariamente, evitarão derrapagens. Mas não proporcionarão uma viagem de qualidade.
Aquilo que precisávamos era de trocar pneus velhos e gastos por pneus novos e mais adequados às estradas, caminhos, etc, de hoje. A opção foi recauchutar.
O Dec-Lei nº 3/2008 (de educação especial, actual) não tem, por isso, erros, uma vez que a recauchutagem (o palavreado, a nova roupagem linguística) foi feita com algum cuidado. Esse Dec-Lei É UM ERRO. É uma opção errada: uma recauchutagem burocrática e completamente inútil no nosso tempo e sobretudo para o futuro.
Ao tentar evitar a excessiva catalogação de alunos com deficiência, aquilo que estabelece é que se cataloguem menos. O erro continua, só que será menos frequente. Só que para ser menos frequente os alunos têm de se submeter a processos de catalogação muito mais frequentes e invasivos da sua dignidade, ainda que no fim se lhes diga que foi para nada que se sujeitaram a esses processos de avaliação da marca que se esperava poder colocar-lhes na testa. Haverá alunos que não preenchem os requisitos do catálogo e, por isso, serão catalogados como tendo problemas não catalogáveis para efeitos de um certo tipo de apoio.
Para os alunos devidamente catalogados, haverá respostas também devidamente catalogadas, de acordo com os princípios básicos e elementares da mais hipócrita exclusão. Quando se responde às pessoas em função da sua categoria, está-se inevitavelmente a promover a sua exclusão: quando se diz, por exemplo, que uma determinada pessoa, sendo mulher e por ser mulher, não deve fazer certas coisas, estamos a programar uma parte da sua vida em função da categoria a que pertence e não em função de si mesma; é este tipo de procedimentos que conduz à exclusão, das mulheres, dos ciganos, em suma, dos não dominantes. O Dec Lei actual da educação especial assume esta estratégia com convicção, conseguindo, mesmo assim, e sem qualquer pudor dizer de si mesmo que promove a inclusão.
Os novos pneus que precisávamos apontavam para características diferentes. Sabendo-se que um grande número de alunos com problemas não precisa de recursos especializados de apoio, ou que seria insensato chamar recursos especializados àquilo de que necessitam, deveria saber-se também que, só garantindo o apoio que precisam é que conseguimos evitar que venham a pressionar as escolas e os professores para acederem a apoio especializado. Deveria também saber-se que a avaliação da necessidade de recursos especializados só é correcta no confronto com a realidade de que o aluno não precisa deles, mas de outros de outro tipo. Na ausência desta realidade, torna-se necessário apelar a critérios externos à qualidade da educação, porque se assume que a educação não tem nem deve ter qualidade bastante. É esta a opção, ridícula como se vê, do Dec-Lei nº 3/2008.
O mais grave é que, embora pudéssemos esperar que a legislação sobre o governo das escolas, de algum modo, corrigisse este dislate, a nossa esperança sai completamente defraudada.
A constituição de um Conselho Geral por escola ou agrupamento só pode ter o objectivo de o tornar ineficaz ou cacique (a mesma coisa com manifestações diferentes).
O Conselho Geral podia muito bem ser um serviço local com as atribuições que lhe estão destinadas, mas com intervenção na política de educação da comunidade em que a escola está inserida mais do que na política de cada escola. Por outro lado, deveria também dispor de recursos técnicos para combate ao insucesso escolar, à fuga à escolaridade obrigatória, para promoção do apoio educativo e formação de professores. Só que esta opção significaria a partilha do poder com o governo.... mais do que com cada escola isoladamente. O Conselho teria o poder de regular o funcionamento das escolas, mas também corresponderia a uma estratégia organizada de contestação dos abusos do poder central. A coragem, enorme já o sabemos, de Suas Excelências não vai até este ponto.
POr outro lado, a proposta de Decreto sobre o Governo das Escolas não opta pela melhor solução para dotar a escola de meios adequados ao apoio à aprendizagem de todos os alunos.
Resumindo, deveria centrar toda a organização das escolas na constituição de verdadeiras equipas educativas. A organização das Equipas Educativas deveria ser de molde a que todos os professores fizessem parte de uma única equipa, admitindo-se em função de variáveis, neste momento difíceis de controlar, que fizesse parte no máximo de duas equipas. O Conselho pedagógico deveria ser constituído pelos coordenadores destas equipas e pelos coordenadores responsáveis pela promoção da qualidade científica da escola (grupos disciplinares ou departamentos de composição razoável). O Conselho Pedagógico deveria ser um Conselho Científico-Pedagógico.
As equipas educativas são as responsáveis por toda a acção educativa organizada para os alunos. São elas que organizam os apoios, os clubes, as substituições de profs, etc.
Enfim, talvez estejamos a ser governados por pessoas que têm o número privado de Deus e só a ele consultem para decidir; mas, do meu ponto de vista, são o diabo.

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