segunda-feira, 22 de março de 2010

História de dois Patifes

História de dois patifes
Fialho de Almeida
Toda a manhã, Fernanda andou impaciente pelas casas, esperando os gatinhos. Ao acordar, fora
aquela a sua primeira ideia – os dois pequeninos animais, cheios de viveza e graça, em cujos olhos
ria uma inocência travessa e doce. Havia tempos que a tia Consuelo lhos prometera, quando fossem
crescidinhos. E a cada visita à boa senhora, Fernanda levava horas e horas com eles, brancos de
neve, uma finura de penugem que acariciava a pele, as duas cabecinhas inquietas com orelhas que
se fitavam petulantemente, a cada ruído do gabinete. Fernanda tinha uma paixão por aqueles dois
diabitos brancos que levavam os dias, ou sugando as tetas da mãe, grande gata de pêlo fulvo e
pupilas glaucas, ou rebolando no tapete os corpinhos eléctricos, numa embriaguez de vida que fazia
prazer. O gato era o mais leviano, com as suas patinhas fofas e os dedos rosados na planta, de que as
unhas transparentes e curvas saíam desembainhadas, nos momentos de irritação, se lhe pisavam a
cauda. Tinha os olhos azuis, cheios de fibrilhas inquietas mais escuras, uma ingenuidade selvagem
no encarar, fitando as orelhas veludinosas, em que parecia residir toda a petulância dessa cabeça
infantil. O focinho cor-de-rosa, com barbicas alvoroçadas, sorria um pouco, mesmo quando
assanhado, e de gengivas, vermelhas e húmidas, os dentinhos em serra, agudos e pequenos,
ressaíam gulosos, desafiando a gente. A gatinha afectava mais seriedade e mais coquetterie, uma
ambição contida de se fazer senhora, e uma ciência complicada em se fazer amar do macho. Nunca
era a primeira no ataque, e zangava-se, mal pressentia uma ofensa. À comida exigia os melhores
pedaços, rosnando sôfrega, com a pata irriçada de unhitas curvas, contra o primeiro que lhe
chegasse ao prato. Dormitava muito, como a mãe; às vezes o irmãozito chegava-se cauteloso,
estendendo as patas e movendo vagarosamente a cauda, as pupilas cheias de um clarão de patifaria.
Com um movimento destro erguia uma pata – zás! – no ventre da sua companheira, que entreabria
preguiçosamente os olhos, imóvel, com o focinho enterrado na penugem do ventre. Esta indiferença
benévola arrojava o gaillard do gatinho a maiores garotices. Chegava-se muito meigo, unhas
escondidas, o dorso alto, as orelhas chatas e deitadas para trás. Com as duas patas da frente, cingia o
pescoço da pequenina, e entrava a morder-lhe repetidamente o peito, os lábios, a pontinha das
orelhas, enquanto com as unhas traseiras lhe raspava voluptuosamente o ventre e as coxas,
provocando cócegas.
Ela estremecia, toda percorrida de um gozo íntimo e alongando o corpo para trás; e de ventre
para o ar ficava imóvel, espreitando, com a boca entreaberta e os olhitos reluzentes de uma cáustica
lascívia, de bacante nua. Abraçavam-se então, lutando, as caudas em espiras; armavam saltos por
cima dos móveis, iam esconder-se nas franjas espessas dos fauteuils muito baixos e, suspendendose
em cacho dos pés esculpidos das consolas incrustadas de metal e madrepérola, sacudiam-se,
balançando os corpos como dois ginastas em exercícios de destreza. A tia Consuelo impacientava-se
já de semelhantes correrias. Descobria uma nódoa no carmesim do divã da sala e achara estripado a
unhadas o ventre de uma antiga bergère preciosa, do tempo da senhora infanta D. Ana. Além disso,
a estroinice dos brutinhos punha uma nota impertinente na monotonia sonolenta da casa, antiga casa
cheia de silêncio e conforto, onde o piano dormia meses inteiros e os móveis do salão alinhavam,
como colegiais em revista, os seus bojos vestidos em camisas de bretanha.
A gatarrona mãe, toda insensível às festas, muda e empertigada como a dona da casa, era tão
indolente como esta; e ao lado de D. Consuelo, sobre uma almofada de seda, dormia dias inteiros,
com uma coleira escarlate de fechos de ouro. Só ela, com a sua idade circunspecta e a sua moleza
freirática, dizia bem no salão de cores austeras em que D. Consuelo recebia os padres de S. Luís e
as irmãs do Coração de Maria, e levava as tardes sepultada na voltaire, toda amortalhada em veludo
negro, touca de rendas pretas e as Meditações sobre o Divino Jesus nos joelhos. De forma que, um
domingo, determinou expulsar do santuário os patifes ruidosos, o que alegrou Fernanda vivamente:
ia enfim ser toda daqueles garotinhos gentis e ferozes.
Era domingo, luminoso dia de Primavera germinadora e florida, sonoro de rumores de gente
festiva e cortada de voos de andorinhas meigas, que entravam a construir os ninhos pelas cimalhas
das águas-furtadas. Fernanda não quis almoçar sem que os bichos viessem; conseguira dois lugares
à mesa para eles; a gatinha ficar-lhe-ia quase no colo, o gato mais longe, com um pratinho de
porcelana provido dos melhores bocados. E que nome lhes poriam? Foi um meditar profundo sobre
o problema.
Houvera em casa uma gata francesa, que morrera de velha e tinha um rabo branco caricioso – a
Blanche. Pobre querida! Estava sepultada no jardim entre duas roseiras de todo o ano. E Fernanda
recordava o seu modo subtil de se roçar pelas saias à comida, com o ronrom dolente de uma beata
oferecendo rezas, e o seu comer dificultoso de desdentada, rejeitando os ossos das perdizes e
preferindo bolos fofos, de recheios aromáticos, que ao almoço se serviam em pilhas, sobre
cabazinhos de rosas, de velho Sevres rococó. E aparecera morta uma manhã de Inverno, ao pé do
lago. A gatinha devia chamar-se Blanche também, um nome da cor do seu vestido cetinoso de
princesa. Mas o Artur, o garoto mais velho da casa, era de opinião diversa. Segundo ele, deviam
baptizar-se os dois bebés, na banheira de mármore do rés-da-chão, sendo ele padrinho, mais o
trintanário.
Mergulhariam os moiritos na banheira cheia de uma água perfumada, ao som de rezas que só ele
sabia, e de umas bengaladas valentes, ao primeiro berro que soltassem os neófitos, na banheira
trasvazando. Depois do que, seria servido vinho aos pequenos, com aplicação de pancadaria
suplementar e guizadas ao pescoço – o que os tornaria fortes, avisados e aptos à compreensão da
vida e à constância na luta com as arganaças, que por acaso encontrassem nas excursões à despensa
ou às cocheiras da casa. Fernanda magoou-se com semelhantes opiniões, e quase chorou pelos
pobres inocentes que lhe mandava, do fundo do seu conforto beato e egoísta, a boa tia Consuelo.
Quando eles chegaram num cabaz de vimes, com laços ao pescoço e um pouco assustados da
jornada, Fernanda não sabia que fazer para melhor exprimir a sua satisfação: era um coro de risos
cândidos e gorjeios inocentes; ia do pai para os joelhos da mamã e, esquecida já das maldades do
Artur, passava-lhe os braços ao pescoço, cobrindo-lhe a face de beijos. Quisera para os dois
gatinhos todo um palácio de seda e gulodices, com o seu trem completo de cozinha, a longa bateria
de peças de folha reluzentes e pequenas, fogões instalados nos respectivos poiais de madeira
pintada, um serviço de porcelana fina, mobília e carruagens elegantemente forradas a pedaços de
cetim de todas as cores, lavatórios e leitos, uma multidão de objectos microscopicamente
construídos, que a paciência da mamã adquirira durante uma semana inteira de investigações, pelos
armazéns de quinquilharias da cidade. E a instalação, que encantadora e que trabalhosa!...
A gatinha saltava desdenhosamente por cima das otomanas e das causeuses delicadas, atirava
com lavatórios e caçarolas, fazendo com a cauda desabar os guarda-louças tão ricamente providos.
Quanto ao gato, foi impossível metê-lo no quiosque dourado, onde tantas preciosidades de mobília
se acumulavam. Ao primeiro esforço de Fernanda para o fazer entrar, assoprou raivoso,
desembainhando unhas ameaçadoras contra a doce protectora, que tão generosamente lhe ofertara
opulência e conforto. E, apenas o largaram no parquet, desatou a fugir pelas salas como um
desalmado evadido. Em breve, Fernanda se persuadiu da impossibilidade completa de fazer caseiro
o ménage.
E a pomposa e pequenina residência passou a ser habitada por uma família extraordinária de
bonecas de todos os tamanhos. A paixão do loiro amorzinho pelos dois maus animais vertia agora o
fel de uma ingratidão profunda. Ela não podia compreender realmente o desdém soberano dos gatos
pelas magníficas provas de amor que lhes dera, no seu entusiasmo de pequena caprichosa. E, nos
primeiros dias, os seus afagos para os gatinhos orvalhavam-se das lágrimas dum ressentimento
angélico e mal contido. Eles, os dois patifes, adquiriram pouco a pouco a sua franca e leviana
liberdade; ao almoço e ao jantar subiam pelos vestidos e pela toalha, reclamando em voz alta o seu
talher de pessoas de família; atacavam sem a menor cerimónia os pratos que apanhavam sem guarda
no aparador e nas bancas da cozinha; iam miar em coro por baixo das alcofas da carne crua e dos
cabazes providos de peixe fresco; escamugiam-se sorrateiramente para a despensa, a encherem os
bandulhos de quanto apanhavam de suculento, e umas vezes por outras, nas noites húmidas e
chuvosas, tinham o péssimo costume de afiar as unhas nos mognos polidos e nos estofos matizados
dos gabinetes, sulcando e rasgando, sem preferência e sem atenção de preços. Fernanda ria com eles
e achava-os de uma graça cativante.
E, a todo o transe, defendia-lhes as velhacadas, orgulhosa de sofrer pelos que amava com
tamanha loucura.
Chegou o dia dos anos do Artur – uma quinta-feira, em Maio. Determinaram ir passar o dia à
quinta, em Carriche.
Ia a boa dama Consuelo, as pequenas Magalhães, as primas Lopes e todo o mundo infantil da
família. Na véspera, disfarçadamente, enquanto o Artur estava no colégio, Fernanda saíra com a
mamã à compra de presentes para o dia seguinte. Tinha um mundo de projectos na mente: torres
ideais de cartonagem com sinos dourados e portais de colunelos; jardins de cascatas surpreendentes;
grandes exércitos de chumbo formados em ordem de ataque com baterias de latão; as arcas de Noé,
em que reside um mundo inteiro de bugigangas coloridas; esquadras empavesadas de flâmulas com
almirantes de estanho, comandando tripulações de madeira suíça; pequeninos teatros com figuras de
verniz e paisagens ternas de Nuremberg; tudo quanto a fantasia pode realizar de pueril e caprichoso
e quanto uma criança pode exigir, na incoerência dos seus devaneios cor-de-rosa.
A mamã aconselhava um cabazinho de doces frescos, do Baltresqui. Era mais delicado! Mas
Fernanda tinha os olhos numa catedral de madeira branca, elegantíssima de cúpulas e rendilhados,
por cujo pórtico profundo e alto, na sua escadaria de balaústres góticos, urna multidão de fiéis ia
subindo, colada com goma-arábica.
– Que lindo, mamã, que lindo! – dizia ela pousando devotadamente as duas mãozinhas toute
roses no magnífico zimbório com ventanas de espelho e ornatos de cartão, representando faunos
engalfinhados. E imperiosa, empertigada nos tacões dourados dos seus sapatinhos de verniz,
declarou que escolhera, e que o Artur deveria ficar muito encantado de um presente de tal modo
original. A catedral foi conduzida na carruagem com extremas cautelas, ao lado de um chapéu que
para a pequenina a mamã escolhera na Emília d'Abreu. Recolheram cedo a casa, antes de o pequeno
voltar, e à noite, num gabinete fechado e sobre a larga mesa coberta de tapete, os presentes da
família e dos amigos do Arturinho ostentavam, num soberbo bazar, as suas formas pitorescas e os
seus matizes originais. Eram os cabazes de camélias vermelhas, bordadas de heras e pequeninos
bouquets de violetas de Parma; as bocetas de cores vivas e esmaltes garridos, túrgidas de doçarias
caras; grupos de porcelana e terre-cuite numa infinidade de posições ingénuas ou garotas. A Laura
deixara a sua fotografia risonha de querubim pensativo, um rostinho doce coroado de uma bela
cabeleira loira, em anéis. E os amigos todos, o Alfredo, o José e os dois gémeos Nogueiras, tinham
vindo trazer uma lembrança amável, chicotes, capacetes, cavalos de molas, mágicos em caixas, o
diabo! Ao centro, a catedral de Fernanda, com as suas torres severas, de um gótico amaneirado, e o
seu zimbório de colunelos flexuosos, erguia-se majestosamente no meio da cidade de camélias e
violetas, e das pinturas vívidas dos cofres, cheios de rebuçados e pastilhas e aromatizados das mais
finas essências.
Por entre as corbeilles, extravasando cores e perfumes, os gitanos de terre-cuite dançavam aos
pares, e as pastorinhas de louça com os seus trajos coloridos e os seus rostinhos frescos, pareciam
de antemão celebrar a formosa manhã a desabrochar no aniversário do dia seguinte.
Como o Artur ficaria contente, quando ao outro dia abrissem à sua curiosidade aquele profuso
mundo de brinquedos e gulodices!... E Fernanda, nos bicos dos sapatinhos e sem fazer ruído,
arrumava e dispunha tudo, ao lado da mamã, tocando com as pontas dos dedos as cousas, como
numa capela, absorta num êxtase profundo de sonhos inocentes, como se o seu espírito viajasse por
um grande país de quinquilharias ideais e maravilhosas.
Quando acabaram a tarefa, a mamã sentou-a no colo, comovida por aquela dedicação fraternal e
solícita, que tudo queria para presente de anos do Artur; beijaram-se ambas, por muito tempo.
– É verdade – disse Fernanda –, e o chapéu?
A mamã foi buscar o chapéu: era um delicioso bijou de palha amachucado à banda, com um
ramalhete de miosótis adoravelmente perdido num tufo de gaze fina, tão fina que mal apertava na
mão, parecendo espumar por entre os dedos, como champanhe vertido de uma torneira.
A pequenina quis pô-lo: ficava graciosamente, um pouco tombado sobre os olhos.
De sob as abas, em caprichosos rodopios, rebentava a cabeleira loira de querubim, que adquiria
contra a luz transparências de oiro fino, enquanto uma onda de tule branco ia cingir-lhe o pescoço,
como aragens tecidas por mãos de princesas mouriscas, das que falam os contos do Meio-Dia.
O desejo de Fernanda era não tirar mais esse pequenino e fresco chapéu, cuja aba tombada
enchia de uma sombra húmida os seus grandes olhos. Mas era forçoso esperar o dia seguinte,
quando fossem para a quinta. A pequenina exigiu que o chapéu ficasse sobre a banca, entre os
presentes de anos do Artur, descoberto e aninhado na sua onda fofa de tule branco. Esteve ainda a
olhá-lo: os miosótis com as florinhas miúdas, de uma contextura paciente e nítida, dispostas num
forte cacho azul, entre folhas verde-baço, davam um encanto ingénuo à copa cónica, um pouco
extravagante talvez. Visto de lado, parecia um ninho de penugens tépidas, de que os passarinhos
houvessem partido um minuto antes. De repente a sineta tocou: voltava o Artut do colégio.
Fecharam a porta do gabinete muito depressa, não desconfiasse ele. No dia seguinte, quando lhe
mostrassem tudo, dizendo: – Aí tens, é para ti ... – que loucuras e que júbilos não comoveriam esse
vermelho endiabrado, de que os velhos criados tinham já medo! Apenas o gabinete ficou só, a
gatinha trepou para cima da mesa, e pôs-se a mirar tudo, dando passadinhas leves, toda cautelosa
pelo meio dos presentes acumulados, cheirando e lambendo aqui e além. Nos seus olhitos garotos,
um clarão de malícia ingénua, parecia beber enlevadamente os matizes; farejava os cofres por todos
os lados, baixando a cabecita, como quem reflecte. Diante da catedral o seu pasmo pareceu crescer,
porque se deteve de pescoço estendido, a medir a altura das cúpulas, de patas firmes nos primeiros
degraus da escadaria, com prejuízo de dois devotos de cartão, que esmagou com uma indiferença
soberana. Deu com o chapéu de Fernanda enroscado na faixa de tule branco, e a passadas lentas foi
para ele, com o dorso alto, espiralando a cauda, toda contente do achado. A tarde caía, e o gabinete
carregava-se de sombra.
Pela vidraça, a paisagem ganhava manchas sombrias e grandes esbatimentos de um vago picado
a pontinhos de gás rutilante. Subia do bairro comercial e das grandes ruas de trânsito um tohu-bohu
de labutas que esmorecem, e carruagens que se perdem circulando. Um sino tocava.
No gabinete, faziam-se deslocamentos confusos de formas e de aromas, e os olhos da gata,
fosforescentes, luziam como dois faróis em flutuação, na penumbra alastrada em torno. A palha do
chapelito gemeu: a gata acabava de enroscar-se no ninho da copa, fazendo posição, para dormir.
Nunca sentira cama mais macia e mais doce que aquele fundo de chapéu forrado de seda branca,
onde o tule enrolado dava uma moleza preguiçosa de coxim, de édredon! Inda porém não tinha
cerrado os olhos, e já o irmãozito, dando um salto ágil, caía em cheio sobre a ampla aba do chapéu
amachucando o precioso cacho de miosótis. A coquette então ergueu a cabecinha irónica com um
meneio crioulo de amante benévola. De cima da aba curva, como de cima de um muro, pendia a
patinha do gato, toda branca e nervosa, desafiando.
Essa pata estendeu-se, estendeu-se e, subtil como num jogo de prendas, deu uma sapatadazinha
no crânio da fêmea, retraindo-se logo. Mas a gatinha parecia querer dormir e aninhou-se de novo no
seu fundo de copa, onde a seda punha a alvura cariciosa de uma alcova.
A táctica do gato mudou então: rebolando-se lascivamente pelo declive da aba, o marau pôde
atrair a si todo o tule da faixa livre, que Fernanda enrolara ao pescoço, um momento antes.
Uma vez envolto nas ondas de espuma do tecido, entrou a arrastar o chapéu atrás de si, pela
mesa fora. Foi o sinal: a gatinha sacudiu rapidamente a sonolência, espreguiçou-se com uma
distensão prolongada de patas e de espinha dorsal, escancarando a goela e distendendo as unhas.
Esse movimento largo desenhou vigorosamente o corpinho da fera contente, que desperta. O dorso,
de uma alvura singular de arminho, teve um lampejo brusco de centelha, quando o crânio chato e
muito curto de maxilas ferozes, roçou com um deleite pérfido de volúpia as penugens
imperceptíveis das patas, armadas terrivelmente de alfanges curtos. Com um pulo agachou-se na
copa do chapéu, como numa caverna, à espreita. O seu olho inquieto fuzilava. Todo o corpo
encolhido percorria-se de pequeninos frémitos de impaciência, que as orelhas continuavam,
imprimindo à cabeça um grande cunho de astúcia recalcada. O gato vinha de rastos, apagando o
som dos movimentos, garrido no seu tule como um pajenzito aventureiro. E, à medida que ele
vinha, o pescoço da gata, do outro lado da aba, alongava-se, escorregando docemente pela seda do
forro. Por fim, as patas encontraram-se, e cada qual disputou o tule, às unhadas, a dente. A faixa que
se desenrolava do corpo dele, acabou em frangalhos nas unhas dos dois.
Um golpe desunira porém duas fibras de palha, da aba derrubada. O gatinho meteu a cabecita
pela abertura, radiante de maldade, e foi morder o cacho de miosótis. Do seu lado, a gata continuou
a obra, descobrindo os dentinhos brancos. Mas em breve o destroço se propagou aos presentes de
anos do Artur, com uma rapidez de saque premeditado. As corbeilles viram-se despojadas das suas
cintas de hera, reluzentes e excentricamente recortadas, e dos seus maciços de camélias reais. Na
vertigem do can-can desenfreado, que os dois diabitos armaram por cima da banca, todos os
objectos leves eram arrojados para a banda num rodopio constante: os gitanos partiram braços e
pernas, as pastorinhas ficaram sem cabeça; algumas bocetas violentadas cederam, e foi um destroço
geral de natas, especiarias e recheios. Um rebuçado de ovos ficou pegado à catedral de Fernanda,
obstruindo o pórtico por onde os devotos de cartão começavam a entrar, envernizados e festivos. E
a valsa extraordinária continuava sempre, sem respeito e sem cansaço. Na manhã do dia seguinte,
enquanto no pátio o cocheiro punha o landeau, e as carruagens chegavam, trazendo os priminhos e
as numerosas tias, Fernanda, com uma deliciosa túnica azul-céu e um largo colar de marinheiro
bretão, foi chamar o Arrur, que acabava de vestir-se.
– Bons-dias – disse ela, beijando-o. – Tens ali muitos bonitos; vem ver.
O pequeno não quis saber de mais; foi às carreiras abrir a porta e entrou cheio de avidez no
gabinete onde estavam dispostos os presentes.
Ao princípio, Fernanda e o irmão entreolharam-se num desolamento indescritível, vendo os dois
gatinhos abraçados, que dormiam tranquilos, no meio das ruínas do soberbo bazar construído na
véspera. E tão sossegados como se nada lhes pesasse do que haviam feito!
– Olha – balbuciou Fernanda, sentindo as lágrimas na garganta –, estragaram tudo!
– É verdade – fez atónito o Artur.
Veio-lhe um ímpeto de raiva sanguínea contra os dois patifes, que pareciam zombar, com os
seus tranquilos olhares, da assolação que haviam feito. E, com o primeiro chicote que viu,
descarregou nos lombos do grupo uma vergastada sibilante, que arrancou um berro às duas
gargantas contraídas.
Diante do esqueleto do gracioso chapéu de palha, tão pitorescamente ornado do seu cacho de
miosótis, a pequenita, cruzando as mãozinhas pálidas, de uma escultura fina e reticulada de veias
microscópicas, chorava silenciosamente as pérolas de uma dor serena e de um amor espezinhado de
ingratidões – porque amara com paixão os ingratos pupilos.
– Seus maus! – dizia ela sempre que os via na cozinha, já crescidos, dormitando na mesma
cadeira.
Mas quase sempre a sua mão, esquecida e meiga, lhes ia afagar as cabeças sonolentas e chatas,
como de dois pequeninos tigres preguiçosos.
(in Contos, pp. 161-174, Lello & Irmão Editores, Porto, 1981, 322 pp. - 1ª ed. 1881.)

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