O primeiro grande herético do cristianismo foi Marcião. Apesar de o ter apelidado de "primogénito de Satã", a Igreja com fina consciência, tratou-o sempre com desusada consideração, porque era, com efeito, fora do dogma, uma varão em tudo exemplar.
Marcião, como todo o gnosticismo, parte de uma consciência hiper-sensível ao carácter de limitação, de defeito, de insuficiência adstrito a tudo o que é mundano. Por isso, não admite que o verdadeiro e supremo Deus tenha algo a ver com o mundo: ele é o absolutamente distinto e outro que não o mundo. De outro modo ficaria contaminado moral e ontologicamente com a imperfeição e limitação deste. Daqui que, segundo ele, não possa ser o supremo e autêntico Deus um criador do mundo; seria então criador do insuficiente, portanto, ele mesmo insuficiente. Criar algo é, afinal - interpreto agora Marcião - contaminar-se com o criado. O Deus criador é um poder segundo, é o deus do Antigo Testamento, um Deus que tem muito de intramundano, Deus da justiça e deus dos exércitos, o qual supõe que está referido indissoluvelmente ao crime e à luta. Pelo contrário, o verdadeiro Deus não é justo, é simplesmente bom, não é justiça mas caridade e amor. Existe eternamente alheio ao mundo e ausente do mundo, em absoluta distância dele, não tocado por ele. Mas por ser o absolutamente outro, que não o mundo, compensa-o e completa-o, de tanto não ter que ver com o mundo, salva-o. E esta é para um gnóstico a obra mais altamente divina: não criar o mundo (o mal) como um demiurgo pagão, mas pelo contrário, "descriá-lo", anular a sua maldade constitutiva - isto é, salvá-lo. Não aconteça que me pensem a fazer confissão de marcianismo. Mal posso fazê-la, pois Marcião fala de Deus, problema de teologia, e isto para mim é apenas uma ilustração à margem
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