terça-feira, 12 de junho de 2012

Políticas Educativas em Portugal - Uma Perspectiva Crítica

De mim não é sensato esperar-se que seja um tolerante descomprometido, daqueles que dizem compreender e aceitar as diferenças dos outros, com base simplesmente no direito à diferença. Esta postura corresponde a uma espécie de relativismo que, assumindo a forma de desprezo pelos outros, é de bom tom que se tenha, mas não é de boa formação que se alimente.
Pelo contrário, para mim, o relativismo e a consequente tolerância face às diferenças só podem ter origem na multiplicidade de razões que justificam as nossas opções. A razoabilidade ética ou política é uma condição  necessária à tolerância. A razoabilidade não pressupõe que se alcance o acordo, a unanimidade, mas impõe o respeito. Pode ser razoável que outros procedam de forma diferente da minha, sem que eu tenha de concordar em agir do mesmo modo. A tolerância é, então, a apreensão desta razoabilidade que não impõe concordância, mas respeito, e a sua transposição para a conduta. É deste modo tolerante que, neste texto, se critica a acção do Governo português no campo da educação.

A razoabilidade não é o mesmo que racionalidade. A razoabilidade refere-se às razões múltiplas que justificam o nosso juízo, sendo que cada uma é suficiente para o fundamentar, sem que nenhuma, por si só, seja necessária. Posso, por exemplo, formular três tipos de razões para condenar a invasão do Iraque pelos Estados Unidos:

  1. Antes de ser iniciada uma guerra desta natureza, deve obter-se um amplo consenso favorável da comunidade internacional.
  2. Antes de se iniciar uma guerra desta natureza, deve ter-se a certeza absoluta do bem fundado dos motivos apresentados (deveria ser claro para todos que o Iraque possuía mesmo armas de destruição em massa)
  3. Antes de se iniciar uma guerra desta natureza, deve ser claro como vai ser levada a cabo a gestão da paz e da pacificação posterior.
Cada uma destas razões seria suficiente para que não se iniciasse a guerra. Mas nenhuma delas seria, por si só, necessária. Posso, então, condenar a guerra só pela razão 1, não havendo necessidade de as outras serem também esgrimidas. A isto se chama razoabilidade. A forte razoabilidade da condenação da invasão do Iraque tem origem no facto de haver, pelo menos, duas razões desnecessárias, que mesmo assim se verifica serem legítimas.
A um governo não deve pedir-se racionalidade, aos mercados também não. Mas a ambos deve exigir-se razoabilidade. É essa exigência de razoabilidade que rasga os caminhos do debate democrático. O debate político democrático não é de natureza científica. Se fosse, excluiria os astrónomos, os médicos, etc., do debate sobre educação, os professores dos debates sobre saúde, e por aí adiante, sendo sempre, em cada tema, muito mais os excluídos do que os incluídos. A democracia exige, portanto, razoabilidade, isto é, que as decisões se fundamentem em razões múltiplas que, em combinações variadas, possam, por seu turno, dar origem a diferentes perspectivas igualmente razoáveis e fundamentadamente criticáveis. O núcleo central da democracia é o debate razoável, o debate de razões múltiplas.
Embora insistentemente façam apelo à racionalização (de recursos, da rede escolar, etc.) as políticas educativas, em Portugal, estão, a cada dia que passa, mais distantes da razoabilidade que as deveria caracterizar.
Dois tipos de crenças podem estar na origem do desarrazoado dessas políticas educativas:
  • O fundamentalismo institucional - a instituição, porque indispensável, é justa. Da justeza da sua existência, retira-se a justeza das suas acções. Concretizando: é justo que existam escolas, é mesmo muito mau que elas sejam todas extintas, portanto é bom o que nelas se faz; se não é bom, não será a justeza ou o ajustamento da instituição que devemos questionar, mas o ajustamento dos indivíduos à bondade institucional. Este tipo de fundamentalismo, aplicado à escola, pode ser de difícil compreensão, pela vulgaridade com que é enunciado até por espíritos muito esclarecidos, iluminados mesmo, mas fica mais acessível quando o aproximamos da "bondade" do "mercado livre", ou da "bondade" das Igrejas. Neste fundamentalismo institucional bebem sofregamente todos aqueles que se sentem chamados a desempenhar o poder de forma autoritária, dogmática, ditatorial. Dele se saciam também os mais empenhados críticos das funções do Estado, os libertários, como Nozick, que advogam o "livre mercado" como instituição justa, porque livre, que não pode ser alvo de ataques reguladores, ou outros.
  • O individualismo "pimbamente" romântico - a instituição é o resultado das acções individuais. Não olharam os crentes nesta "pimbalhada" com atenção, como Kant, para a forma como crescem as árvores numa floresta, e para a forma como elas crescem sem companheiras, competidoras ou cooperantes. Às primeiras, a vida em floresta garante que, procurando o sol, o seu crescimento se faça para cima, às segundas, o seu individualismo tem de ser corrigido por podadores, para que os seus ramos não cresçam mais para os lados do que devem.
Na acção política, vemos muitas vezes estes dois tipos de crenças irmanados num abraço que os confunde num só. Na verdade, a atracção pelo autoritarismo e a atracção pela anarquia parecem fazer parte de uma mesma estratégia de luta e de conservação do poder.
O diagnóstico da educação em Portugal, a acreditar na sua relação com as soluções preconizadas e postas em marcha, é muito deficiente, se é que se pode dizer que existe algum que mereça esse nome de "diagnóstico". Uma criança que se queixa de dores de cabeça não está a fazer um diagnóstico: está só a dizer o que sente, e, eventualmente, a sinalizar aquilo que gostaria que fosse corrigido. Se um profissional acreditado afirmar que o seu diagnóstico é as dores de cabeça que a criança tem, seguramente não ultrapassará, nem sequer por via da autoridade que decorre da sua formação académica e profissional, a fase infantil de acreditar que aquilo que se passa é aquilo e só aquilo que ele sabe que se passa. Quando se constata a taxa de insucesso escolar também não se está a fazer um diagnóstico: está a apontar-se para um problema e, eventualmente, a manifestar o desejo de que ele seja resolvido. O diagnóstico não é uma recolha de dados, é uma interpretação. O conjunto de dados que existem sobre a escola não constitui, apesar da sua presumível riqueza e esperado rigor, qualquer diagnóstico. Pode ser uma dor de cabeça, mas não é um diagnóstico, ainda que o seu relato seja da responsabilidade de autoridades ministeriais, ministeriáveis, ou outras.
Um diagnóstico é, convém insistir, uma interpretação. A melhor qualidade de partida que pode ter uma interpretação é a de ser razoável. Aquilo que deve exigir-se de um diagnóstico é que se apresente com razões múltiplas, susceptíveis de serem defendidas e contestadas, é que seja razoável.
Ora, uma qualquer interpretação, seja um diagnóstico, não opera só com os dados recolhidos. Opera com esses dados e com aqueles que são desejáveis num futuro. Não é possível fazer o diagnóstico de uma qualquer situação, sem referência explícita ou implícita ao desejável no futuro. A ideia de neutralidade, a que muitas vezes se recorre, para reduzir o diagnóstico ao tratamento dos dados colhidos na realidade, não tem sentido, muito simplesmente porque, a ser efectivamente concretizada essa redução, aquilo que se está  a fazer não é um diagnóstico. Será, quando muito, uma postura neutra, no sentido em que não tem qualquer interesse para o que quer que seja.
Fazer o diagnóstico da situação actual da escola implica, então, que se tenha uma ideia sobre o que é uma escola sem problemas, com saúde. O debate democrático a respeito da escola situa-se precisamente nesta área ideológica a respeito do que é ou deve ser uma escola boa. Não é na área da verdade ou da falsidade que o debate político se estabelece, mas na área do que é desejável ou não desejável. Ao desejo de um mundo ou de uma escola melhor não se aplica um valor de verdade, a não ser naquele aspecto preciso que consiste em afirmar que se tem ou não se tem esse desejo. É o debate sobre o que é desejável que deve, entre outros, orientar o diagnóstico, sem prejuízo da recolha rigorosa dos dados sobre a situação actual, que, ela também, mais vale que seja conscientemente organizada em função dessa vontade política, do que seja inconscientemente organizada em função de uma vontade política não enunciada. Aqueles que afastam do debate o enunciado de uma ideia desejável sobre o que é uma escola boa, em nome de uma cientificidade mais presumida do que real, não devem pura e simplesmente participar nele, por uma questão de coerência consigo mesmos. Não lhes é legítimo que queiram ter intervenções políticas que não sejam políticas, só para manter o seu estatuto de figura pública mais ou menos bem remunerada.

É neste enquadramento de referência que penso ser útil reequacionar o caminho que está a ser seguido pelas políticas educativas em Portugal. Apesar de esta análise, por força das circunstâncias, se debruçar sobre uma única das medidas concretas (a agregação de escolas), isso não significa que é essa a medida que está errada. O que não é razoável é que o caminho seguido seja o de tomar essa e outras medidas do mesmo género.

  1. Os Mega-Agrupamentos
As agregações de escolas, que formam os mega-agrupamentos, constituem-se a partir da fusão dos órgãos de direcção respectivos. Na verdade, os estabelecimentos escolares continuarão separados entre si e cada um, embora todos sujeitos à mesma direcção, manterá a sua especificidade.Ora, se esta medida visa a redução de custos por via da redução do número de directores a receber as suas gratificações financeiras, ela acaba por ser muito pouco razoável. Com efeito, mais valeria que, a exemplo do que aconteceu noutras situações, as gratificações de direcção fossem reduzidas em 30% ou até em 50%. O objectivo seria alcançado sem outras perturbações de forma mais simples e mais coerente com o que se passa em outras situações do género.Mas é pouco provável que o objectivo seja só esse. O mais certo, apesar dos desmentidos insistentes do senhor secretário de estado da administração educativa, é que se pretenda uma muito mais substancial redução de despesas com a educação, através da "racionalização" da rede escolar. Não me parece errado que se pretenda a redução de despesas, mas parece-me errado que esse objectivo seja sistematicamente escondido, como se fosse uma vergonha poupar dinheiro. Mas a ocultação deste objectivo torna-se ainda muito mais grave do que esta manifestação de infantilidade política, na justa medida em que impede o debate democrático, e desvia as atenções para aspectos distractivos, absolutamente irrelevantes, ou para manifestações de desagrado com o único e triste fundamento de que a medida prejudica o interlocutor discordante. Ocultar os objectivos políticos é o mesmo que afastar as medidas de um debate político sério. É, portanto, desonesto, não só politicamente, mas também ao nível pessoal.

O que é questionável é que essa agregação com vista à gestão racional da rede de ofertas formativas passe pela agregação de escolas através da fusão das suas direcções. Essa agregação seria muito mais eficaz, muito mais eficiente e muito mais promissora para o futuro se tivesse origem na fusão dos Conselhos Gerais, actualmente ao serviço de cada escola ou agrupamento de escolas. Estes órgãos da administração escolar não têm sentido se limitados à área de influência das direcções. A sua utilidade só pode ser entendida se a sua abrangência for superior a essa área de influência. Os conselhos gerais das escolas e dos agrupamentos de escolas podem ser mesmo, em certos casos, fundidos num único a nível concelhio. Seria, todavia, necessário que lhes fossem atribuídas novas funções, para além daquelas que já possuem:

  • gerir a rede escolar
  • avaliar o desempenho das escolas e dos seus directores
  • coordenar as opções formativas destinadas aos docentes

Tal como ficou estabelecido, competirá aos directores dos agrupamentos gerir a rede escolar e as ofertas formativas, no interior de cada agrupamento. Se não for encontrada solução para alguma dificuldade no âmbito da constituição dessa rede, nomeadamente relativa ao número mínimo e máximo de alunos por turma, os directores têm de apelar à intervenção da Direcção Regional, um serviço extinto ou em vias de extinção que não tem meios para fazer outra coisa que não seja a de aceitar a proposta da escola; recusando, corre o sério risco de fazer disparate. Por outro lado, o facto de se alargar a aplicação de regras de constituição de turmas, já comprovadamente conhecidos como nem razoáveis nem racionais, se tivermos em conta a larga experiência desse tipo de critérios no 1º ciclo, agrava ainda mais a fragilidade das escolas, reduz a sua autonomia e não resolve problema nenhum. É que nada garante que o número de alunos inscritos num dado agrupamento seja sempre múltiplo de 26, ou de 27, ou de 28, ou de 29, ou de 30. Assim sendo, remeter para a direcção regional a resolução de todos os problemas, que resultem desta forma indecente que a natureza tem de desafiar o poder dos ministros, acaba por ser uma forma de revitalizar o gosto pela burocracia inútil e pela manutenção de cargos na administração que só podem ser ocupados por incompetentes ou por oportunistas.
O Ministério da Educação não quer de modo nenhum que as condições de autonomia, que seriam geradas pelo alargamento das funções dos conselhos gerais agregados a várias escolas ou agrupamentos, sejam alguma vez postas em prática. Na verdade, esses conselhos, compostos, como agora, por representantes das escolas, das famílias, da autarquia e de organizações locais passariam a ter, de facto, um papel importante a desempenhar na política educativa local.
Mas o senhor ministro não quer, ou não sabe.


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