Antero de Quental, c.1865
Discurso proferido por Antero de Quental, numa sala do Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871, durante a 1.ª sessão das Conferências Democráticas
Antero de Quental tenta explicar as razões do atraso português, e do espanhol, desde o século XVII.
Para ele as causas são três:
1) a reacção religiosa, conhecida como Contra-Reforma, consumada no Concílio de Trento e dirigida pelos jesuítas;
2) a centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais, e
3) o sistema económico criado pelos descobrimentos, de rapina guerreira, que tinha impedido o desenvolvimento de uma pequena burguesia.
A conferência sistematiza teses apresentadas há muito por Alexandre Herculano. Foi publicada em folheto, tendo exercido posteriormente uma grande influencia, sobretudo em Oliveira Martins, que escreverá a História da Civilização Ibérica e a História de Portugal, em 1879, e o Portugal Contemporâneo, em 1881, tendo como base as teses de Antero e de Herculano.
Meus Senhores:
A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.
Conheço quanto é delicado este assunto, e sei que por isso dobrados deveres se impõem à minha crítica. Para uma assembleia de estrangeiros não passará esta duma tese histórica, curiosa sim para as inteligências, mas fria e indiferente para os sentimentos pessoais de cada um. Num auditório de peninsulares não é porém assim. A história dos últimos três séculos perpetua-se ainda hoje entre nós em opiniões, em crenças, em interesses, em tradições, que a representam na nossa sociedade, e a tornam de algum modo actual. Há em nós todos uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca: a razão pode condená-lo: o coração tenta ainda absolvê-lo. É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso, do que as ilusões: e são as nossas ilusões o que a razão critica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós.
Não posso pois apelar para a fraternidade das ideias: conheço que as minhas palavras não devem ser bem aceites por todos. As ideias, porém, não são felizmente o único laço com que se ligam entre si os espíritos dos homens. Independente delas, se não acima delas, existe para todas as consciências rectas, sinceras, leais, no meio da maior divergência de opiniões, uma fraternidade moral, fundada na mútua tolerância e no mútuo respeito, que une todos os espíritos numa mesma comunhão - o amor e a procura desinteressada da verdade. Que seria dos homens se, acima dos ímpetos da paixão e dos desvarios da inteligência, não existisse essa região serena da concórdia na boa-fé e na tolerância recíproca! Uma região onde os pensamentos mais hostis se podem encontrar, estendendo-se lealmente a mão, e dizendo uns para os outros com um sentimento humano e pacífico: és uma consciência convicta! É para essa comunhão moral que eu apelo. E apelo para ela confiadamente, porque, sentindo-me dominado por esse sentimento de respeito e caridade universal, não posso crer que haja aqui alguém que duvide da minha boa-fé, e. se recuse a acompanhar-me neste caminho de lealdade e -tolerância.
Já o disse há dias, inaugurando e explicando o pensamento destas Conferências: não pretendemos impor as nossas opiniões, mas simplesmente expô-las: não pedimos a adesão das pessoas que nos escutam; pedimos só a discussão: essa discussão, longe de nos assustar, é o que mais desejamos, porque; ainda que dela resultasse a condenação das nossas ideias, contanto que essa condenação fosse justa e inteligente, ficaríamos contentes, tendo contribuído, posto que indirectamente, para a publicarão de algumas verdades. São prova da sinceridade deste desejo aqueles lugares e aquelas mesas, destinadas particularmente aos jornalistas, onde podem tomar nota das nossas palavras, tornando-lhes nós assim franca e fácil a contradição.
Meus Senhores: a Península, durante os séculos XVII, XVIII e XIX; apresenta-nos um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos no primeiro período da Renascença, durante toda a Idade Média, e ainda nos últimos séculos -da Antiguidade. Logo na época romana aparecem os caracteres essenciais da raça peninsular: espírito de independência local e originalidade de génio inventivo. Em parte alguma custou tanto à dominação romana o estabelecer-se, nem chegou nunca a ser completo esse estabelecimento. Essa personalidade independente mostra-se claramente, na literatura, onde os espanhóis Lucano, Séneca, Marcial, introduzem no latim um estilo e uma feição inteiramente peninsulares, e singularmente característicos. Eram os prenúncios da viva. originalidade que ia aparecer nas épocas seguintes. Na Idade Média a Península, livre de estranhas influências, brilha na plenitude do seu génio, das suas qualidades naturais. O instinto político de descentralização e federalismo patenteia-se na multiplicidade de reinos e condados soberanos, em que se divide a Península, como um protesto e uma vitória dos interesses e energias locais, contra. a unidade uniforme, esmagadora e artificial. Dentro de cada uma dessas divisões as comunas, os forais, localizam ainda mais os direitos, e manifestam e firmam, com um sem-número de instituições, o espírito independente e autonómico das populações. E esse espírito não é só independente: é, quanto a época o comportava, singularmente democrático. Entre todos os povos da Europa central e ocidental, somente os da Península escaparam ao jugo de ferro do feudalismo. O espectro torvo do castelo feudal não assombrava os nossos vales, não se inclinava, como uma ameaça, sobre a margem dos nossos rios, não entristecia os nossos horizontes com o seu perfil duro e sinistro. Existia, certamente, a nobreza, como uma ordem distinta. Mas o foro nobiliário generalizara-se tanto, e tornara-se de tão fácil acesso, naqueles séculos heróicos de guerra incessante, que não é exagerada a expressão daquele poeta que nos chamou, a nós Espanhóis, um povo de nobres. Nobres e populares uniam-se por interesses e sentimentos, e diante deles a coroa dos reis era mais um símbolo brilhante do que uma realidade poderosa. Se nessas idades ignorantes a ideia do Direito era obscura e mal definida, o instinto do Direito agitava-se enérgico nas consciências, e as acções surgiam viris como os caracteres.
A tais homens não convinha mais o despotismo religioso do que o despotismo político: a opressão espiritual repugnava-lhes tanto como a sujeição civil. Os povos peninsulares são naturalmente religiosos: são-no até de uma maneira ardente, exaltada e exclusiva, e é esse um dos seus caracteres mais pronunciados. Mas são ao mesmo tempo inventivos e independentes: adoram com paixão: mas só adoram aquilo que eles mesmos criam, não aquilo que se lhes impõe. Fazem a religião, não a aceitam feita. Ainda hoje duas terças partes da população espanhola ignoram completamente os dogmas, a teologia e os mistérios cristãos: mas adoram fielmente os santos padroeiros das suas cidades: porquê? porque os conhece, porque os fez. O nosso génio é criador e individualista: precisa rever-se nas suas criações. Isto (junto à falta de coesão do maquinismo católico da Idade Média, ainda mal definido e pouco disciplinado pela inexorável escola de Roma) explica suficientemente a independência das igrejas peninsulares, e a atitude altiva das coroas da Península diante da cúria romana. Os papas eram já muitos: mas os bispos e as cortes eram ainda bastantes. Para as pretensões italianas havia um não muito franco e muito firme. E essa resistência não saía apenas da vontade e do interesse de alguns: saía do impulso incontrastável do génio popular. Esse génio criador via-se no aparecimento de rituais indígenas, numa singular liberdade de pensamento e interpretação, e em mil originalidades de disciplina. Era o sentimento cristão, na sua expressão viva e humana, não formal e ininteligente: a caridade e a tolerância tinham um lugar mais alto do que a teologia dogmática. Essa tolerância pelos Mouros e Judeus, raças infelizes e tão meritórias, será sempre uma das glórias do sentimento cristão da Península da Idade Média. A caridade triunfava das repugnâncias e preconceitos de raça e de crença. Por isso o seio do povo era fecundo; saíam dele santos, individualidades à uma ingénuas e sublimes, símbolos vivos da alma popular, e cujas singelas histórias ainda hoje não podemos ler sem enternecimento.
No mundo da inteligência não é menos notável a expansão do espírito peninsular durante a Idade Média. O grande movimento intelectual da Europa medieval compreende a filosofia escolástica e a teologia, as criações nacionais dos ciclos épicos, e a arquitectura. Em nada disto se mostrou a Península inferior às grandes nações cultas, que haviam recebido a herança da civilização romana. Demos à escola filósofos como Raimundo Lúlio; à Igreja, teólogos e papas, um destes português, João XXI. As escolas de Coimbra e Salamanca tinham uma celebridade europeia: nas suas aulas viam-se estrangeiros de distinção atraídos pela fama dos seus doutores. Entre os primeiros homens do século XIII está um, monarca espanhol, Afonso, o Sábio, espírito universal, filósofo, político e legislador. Nem posso também deixar esquecidos os mouros e judeus, porque foram uma das glórias da Península. A reforma da escolástica, nos séculos XIII e XIV, pela renovação do aristotelismo, foi obra quase exclusiva das escolas árabes e judaicas de Espanha. Os homens de Averróis (de Córdova), de Ibn-Tophail (de Sevilha) e os dois judeus Maimónides e Avicebron serão sempre contados entre os primeiros na história da filosofia na Idade Média. Ao pé da filosofia, a poesia. Para opor aos ciclos épicos da Távola Redonda, de Carlos Magno e do Santo Graal, tivemos aquele admirável Romancero, as lendas do Cid, dos Infantes de Lara, e tantas outras, que se teriam condensado em verdadeiras epopeias, se o espírito clássico da Renascença não tivesse vindo dar à Poesia outra direcção. Ainda assim, grande parte, a melhor parte talvez, do teatro espanhol saiu da mina inesgotável do Romancero. Para opor aos trovadores provinciais, tivemos também trovadores peninsulares. Dos nossos reis e cavaleiros trovaram alguns com tanto primor como Beltrão de Born ou o conde de Tolosa. Quanto à arquitectura, basta lembrar a Batalha e a Catedral de Burgos, duas das mais belas rosas góticas desabrochadas no seio da. Idade Média. Em tudo isto acompanháramos a Europa, a par do movimento geral. Numa coisa, porém, a excedemos, tornando-nos iniciadores: os estudos geográficos e as grandes navegações. As descobertas, que coroaram tão brilhantemente o fim do século XV, não se fizeram ao acaso. Precedeu-as um trabalho intelectual, tão científico quanto a época o permitia, inaugurado pelo nosso infante D. Henrique, nessa famosa escola de Sagres, de onde saíam homens como aquele heróico Bartolomeu Dias, e cuja influência, directa ou indirectamente, produziu um Magalhães e um Colombo. Foi uma onda que, levantada aqui, cresceu até ir rebentar nas praias do Novo Mundo. Viu-se de quanto eram capazes a inteligência e a energia peninsulares. Por isso a Europa tinha os olhos em nós, e na Europa a nossa influência nacional era das que mais pesavam. Contava-se para tudo com Portugal e Espanha. O Santo Império alemão oferece a orgulhosa coroa imperial a um rei de Castela, Afonso, o Sábio. No século XV, D. João I, árbitro em várias questões internacionais, é geralmente considerado, em influência e capacidade, como um dos primeiros monarcas da Europa. Tudo isto nos prepara para desempenharmos, chegada a Renascença, um papel glorioso e preponderante. Desempenhámo-lo, com efeito, brilhante e ruidoso: os nossos erros, porém, não consentiram que fosse também duradouro e profícuo. Como foi que o movimento regenerador da Renascença; tão bem preparado, abortou entre nós mostrá-lo-ei logo com factos decisivos. Esse movimento só foi entre nós representado por uma geração de homens superiores, a primeira. As seguintes, que o deviam consolidar, fanatizadas, entorpecidas, impotentes, não souberam compreender nem praticar aquele espírito tão alto e tão livre: desconheceram-no, ou combateram-no. Houve, porém, uma primeira geração que respondeu ao chamamento da Renascença; e enquanto essa geração ocupou a cena, isto é, até ao meado do século XVI, a Península conservou-se à altura daquela época extraordinária de criação e liberdade de pensamento. A renovação dos estudos recebeu-a nas suas Universidades novas ou reformadas, onde se explicavam os grandes monumentos literários da Antiguidade, muitas vezes na própria língua dos originais. Entre as 43 Universidades estabelecidas na Europa durante o século XVI, 14 foram fundadas pelos reis de Espanha. A filosofia neoplatónica, que substituía por toda a parte a velha e gasta escolástica, foi adoptada pelos espíritos mais eminentes. Um estilo e uma literatura novos surgiram com Camões, com Cervantes, com Gil Vicente, com Sá de Miranda, com Lope de Vega, com Ferreira. Demos às escolas da Europa sábios como Miguel Servet, precursor de Harvey, filósofos como Sepúlveda, um dos primeiros peripatéticos do tempo, e o português Sanches, mestre de Montaigne. A família dos humanistas, verdadeiramente característica da Renascença, foi representada entre nós por André de Resende, por Diogo de Teive, pelo bispo de Tarragona, Antonio Augustin, por Damião de Góis, e por Camões, cuja inspiração não excluía uma erudição quase universal. Finalmente, a arte peninsular ergue nessa época um voo poderoso, com a arquitectura chamada manuelina, criação duma originalidade e graça surpreendentes, e com a brilhante escola de pintura espanhola, imortalizada por artistas como Murillo, Velásquez, Ribera. Fora da pátria guerreiros ilustres mostravam ao mundo que o valor dos povos peninsulares não era inferior à sua inteligência. Se as causas da nossa decadência existiam já latentes, nenhum olhar podia ainda então descobri-Ias: a glória, e uma glória merecida, só dava lugar à admiração.
Deste mundo brilhante, criado pelo génio peninsular na sua livre expansão, passamos quase sem transição para um mundo escuro, inerte, pobre, ininteligente e meio desconhecido. Dir-se-á que entre um e outro se meteram dez séculos de decadência: pois bastaram para essa total transformação 50 ou 60 anos! Em tão curto período era impossível caminhar mais rapidamente no caminho da perdição.
No princípio do século XVII, quando Portugal deixa de ser contado entre as nações, e se desmorona por todos os lados a monarquia anómala, inconsistente e desnatural de Filipe II; quando a glória passada já não pode encobrir o ruinoso do edifício presente, e se afunda a Península sob o peso dos muitos erros acumulados, então aparece franca e patente por todos os lados a nossa improcrastinável decadência. Aparece em tudo; na política, na influencia, nos trabalhos da inteligência, na economia social e na indústria, e como consequência de tudo isto, nos costumes. A preponderância, que até então exercêramos nos negócios da Europa, desaparece para dar lugar à insignificância e à impotência. Nações novas ou obscuras erguem-se e conquistais no mundo, à nossa custa, a influência de que nos mostrámos indignos. A coroa de Espanha é posta em leilão sangrento no meio das nações, e adjudicada, no fim de doze anos de guerra, a um neto de Luís XIV. Com a dinastia estrangeira começa uma política antinacional, que envilece e desacredita a monarquia. E esse rei estrangeiro custa à Espanha a perda de Nápoles, da Sicília, do Milanês, dos Países Baixos! Em Portugal, é a influência inglesa, que, por meio de cavilosos tratados, faz de nós uma espécie de colónia britânica. Ao mesmo tempo as nossas próprias colónias escapam-nos gradualmente das mãos: as Molucas passam a ser holandesas; na índia lutam sobre os nossos despojos holandeses, ingleses e franceses: na China e no Japão desaparece a influência do nome português. Portugueses e Espanhóis, vamos de século para século minguando em extensão e importância, até não sermos mais que duas sombras, duas nações espectros, no meio dos povos que nos rodeiam!... E que tristíssimo quadro o da nossa política interior! As liberdades municipais, à iniciativa local das comunas, aos forais, que davam a cada população uma fisionomia e vida próprias, sucede a centralização, uniforme e esterilizadora. A realeza deixa então de encontrar uma resistência e uma força exterior que a equilibre, e transforma-se no puro absolutismo; esquecendo a sua origem e a sua missão, crê ingenuamente que os povos não são mais do que o património providencial dos reis. O pior é que os povos acostumam-se a crê-lo também! Aquele espírito de independência que inspirava o firme si no, no! da Idade Média adormece e morre no seio popular. O povo emudece; negam-lhe a palavra, fechando-lhe as Cortes; não o consultam, nem se conta já com ele. Com quem se conta é com a aristocracia palaciana, com uma nobreza cortesã, que cada vez se separa mais do povo pelos interesses e pelos sentimentos, e que, de classe, tende a transformar-se em casta. Essa aristocracia, como um embaraço na circulação do corpo social, impede a elevação natural de um elemento novo, elemento essencialmente moderno, a classe média, e contraria assim todos os progressos ligados a essa elevação. Por isso decai também a vida económica: a produção decresce, a agricultura recua, estagna-se o comércio, deperecem uma por uma as indústrias nacionais; a riqueza, uma riqueza faustosa e estéril, concentra-se em alguns pontos excepcionais, enquanto a miséria se alarga pelo resto do país: a população, dizimada pela guerra, pela emigração, pela miséria, diminui de uma maneira assustadora. Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo tão pobre! No meio dessa pobreza e dessa atonia, o espírito nacional, desanimado e sem estímulos, devia cair naturalmente num estado de torpor e de indiferença. É o que nos mostra claramente esse salto mortal dado pela inteligência dos povos peninsulares, passando da Renascença para os séculos XVII e XVIII. A uma geração de filósofos, de sábios e de artistas criadores, sucede a tribo vulgar dos eruditos sem crítica, dos académicos, dos limitadores. Saímos duma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre: entrámos num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma atmosfera turva pelo pó dos livros velhos, e habitado por espectros de doutores. A poesia, depois da exaltação estéril, falsa, e artificialmente provocada do gongorismo, depois da afectação dos conceitos (que ainda mais revelava a nulidade do pensamento), cai na imitação servil e ininteligente da poesia latina, naquela escola clássica, pesada e fradesca, que é a antítese de toda a inspiração e de todo o sentimento. Um poema compõe-se doutoralmente, como uma dissertação teológica. Traduzir é o ideal: inventar considera-se um perigo e uma inferioridade: uma obra poética é tanto mais perfeita quanto maior número de versos contiver traduzidos de Horácio, de Ovídio. Florescem a tragédia, a ode pindárica, e o poema herói-cómico, isto é, a afectação e a degradação da poesia. Quanto à verdade humana, ao sentimento popular e nacional, ninguém se preocupava com isso. A invenção e originalidade, nessa época deplorável, concentra-se toda na descrição cinicamente galhofeira das misérias, das intrigas, dos expedientes da vida ordinária. Os romances picarescos espanhóis e as comédias populares portuguesas são irrefutáveis actos de acusação, que, contra si mesma, nos deixou essa sociedade, cuja profunda desmoralização tocava os limites da ingenuidade e da inocência no vício. Fora desta realidade pungente, a literatura oficial e palaciana espraiava-se pelas regiões insípidas do discurso académico, da oração fúnebre, do panegírico encomendado – géneros artificiais, pueris, e mais que tudo soporíficos. Com um tal estado dos espíritos, o que se podia esperar da arte? Basta erguer os olhos para essas lúgubres moles de pedra, que se chamam o Escorial e Mafra, para vermos que a mesma ausência de sentimento e invenção, que produziu o gosto pesado e insípido do classicismo, ergueu também as massas compactas, e friamente correctas na sua falta de expressão, da arquitectura jesuítica. Que triste contraste entre essas montanhas de mármore, com que se julgou atingir o grande, simplesmente porque se fez o monstruoso, e a construção delicada, aérea, proporcional e, por assim dizer, espiritual dos Jerónimos, da Batalha, da Catedral de Burgos! O espírito sombrio e depravado da sociedade reflectiu-o a Arte, com uma fidelidade desesperadora, que será sempre perante a história uma incorruptível testemunha de acusação contra aquela época de verdadeira morte moral. Essa morte moral não invadira só o sentimento, a imaginação, o gosto: invadira também, invadira sobretudo a inteligência. Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno. Durante 200 anos de fecunda elaboração, reforma a Europa culta as ciências antigas, cria seis ou sete ciências novas, a anatomia, a fisiologia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geologia: aparecem os Newton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Harvey, os Buffon, os Ducange, os Lavoisier, os Vico – onde está, entre os nomes destes e dos outros verdadeiros heróis da epopeia do pensamento, um nome espanhol ou português? Que nome espanhol ou português se liga à descoberta duma grande lei científica, dum sistema, duma facto capital? A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morrera dentro em nós completamente.
Pelo caminho da ignorância, da opressão e da miséria chega-se naturalmente, chega-se fatalmente, à depravação dos costumes. E os costumes depravaram-se com efeito. Nos grandes, a corrupção faustosa da vida de corte, onde os reis são os primeiros a dar o exemplo do vício, da brutalidade, do adultério: Afonso VI, João V, Filipe V, Carlos IV. Nos pequenos, a corrupção hipócrita, a família vendida pela miséria aos vícios dos nobres e dos poderosos. É a época das amásias e dos filhos bastardos. O que era então a mulher do povo, em face das tentações do ouro aristocrático, vê-se bem no escandaloso processo de nulidade de matrimónio de Afonso VI, e nas memórias do Cavaleiro de Oliveira. Ser rufião é um ofício geralmente admitido, e que se pratica com aproveitamento na própria corte. A religião deixa -de ser um sentimento vivo; torna-se uma prática ininteligente, formal, mecânica. O que eram os frades, sabemo-lo todos: os costumes picarescos e ignóbeis dessa classe são ainda hoje memorados pelo Decameron da tradição popular. O pior é que esses histriões tonsurados eram ao mesmo tempo sanguinários. A Inquisição pesava sobre as consciências como a abóbada dum cárcere. O espírito público abaixava-se gradualmente sob a pressão do terror, enquanto o vício, cada vez mais requintado, se apossava placidamente do lugar vazio que deixava nas almas a dignidade, o sentimento moral e a energia da vontade pessoal, esmagados, destruídos pelo medo. Os casuístas dos séculos XVII e XVIII deixaram-nos um vergonhoso monumento de requinte bestial de todos os vícios, da depravação das imaginações, das misérias íntimas da família, da perdição de costumes, que corria aquelas sociedades deploráveis. Isto por um lado: porque, pelo outro, os casuístas mostram-nos também a que abaixamento moral chegara o espírito do clero, cavando todos os dias esse lodo, revolvendo com afinco, com predilecção, quase com amor, aquele montão graveolente de abjecções. Todas essas misérias íntimas reflectem-se fielmente na literatura. O que eram no século XVII a moral pública, as intrigas políticas, o nepotismo cortesão, o roubo audaz ou sub-reptício da riqueza pública, vê-se (e com todo o relevo duma pena sarcástica e inexorável) na Arte de Furtar do Padre António Vieira. Quanto aos documentos para a história da família e dos costumes privados, encontramo-los na Carta de Guia de Casados de D. Francisco Manuel, nas forças populares portuguesas, e nos romances picarescos espanhóis. O espírito peninsular descera de degrau em degrau, até ao último termo da depravação!
Tais temos sido nos últimos três séculos: sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes. Erguemo-nos hoje a custo, Espanhóis e Portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegámos ressuscitados! Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os gérmenes, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indústria, ligando-se assim intimamente ao que há de mais vital nos povos estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península.
Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio.
Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião.
Da decadência moral é esta a causa culminante! O catolicismo do Concílio de Trento não inaugurou certamente no mundo o despotismo religioso: mas organizou-o duma maneira completa, poderosa, formidável, e até então desconhecida. Neste sentido, pode dizer-se que o catolicismo, na sua forma definitiva, imobilizado e intolerante, data do século XVI. As tendências, porém, para esse estado vinham já de longe; nem a Reforma significa outra coisa senão o protesto do sentimento cristão, livre e independente, contra essas tendências autoritárias e formalísticas. Essas tendências eram lógicas, e até certo ponto legítimas, dada a interpretação e organização romana da religião cristã: não o eram, porém, dado o sentimento cristão na sua pureza virginal, fora das condições precárias da sua realização política e mundana, o sentimento cristão, numa palavra, no seu domínio natural, a consciência religiosa. É necessário, com efeito, estabelecermos cuidadosamente uma rigorosa distinção entre cristianismo e catolicismo, sem o que nada compreenderemos das evoluções históricas da religião cristã. Se não há cristianismo fora do grémio católico (como asseveram os teólogos, mas como não podem nem querem aceitar a razão, a equidade e a crítica), nesse caso teremos de recusar o título de cristãos aos luteranos, e a todas as seitas saídas do movimento protestante, em quem todavia vive bem claramente o espírito evangélico. Digo mais, teremos de negar o nome de cristãos aos apóstolos e evangelistas, porque nessa época a catolicismo estava tão longe do futuro que nem ainda a palavra católico fora inventada! É que realmente o cristianismo existiu e pode existir fora do catolicismo. O cristianismo é sobretudo um sentimento: o catolicismo é sobretudo uma instituição. Um vive da fé e da inspiração: o outro do dogma e da disciplina. Toda a história religiosa, até ao meado do século XVI, não é mais do que a transformação do sentimento cristão na instituição católica. A Idade Média é o período da transição: há ainda um, e o outro aparece já. Equilibram-se. A unidade vê-se, faz-se sentir, mas não chega ainda a sufocar a vida local e autonómica. Por isso é também esse o período das igrejas nacionais. As da Península, como todas as outras, tiveram, durante a Idade Média, liberdades e iniciativas, concílios nacionais, disciplina própria, e uma maneira sua de sentir e praticar a religião. Daqui, dois grandes resultados, fecundos em consequências benéficas. O dogma, em vez de ser imposto, era aceite, e, num certo sentido, criado: ora, quando a base da moral é o dogma, só pode haver boa moral deduzindo-a dum dogma aceite, e até certo ponto criado, e nunca imposto. Primeira consequência, de incalculável alcance.
O sentimento do dever, em vez de ser contradito pela religião, apoiava-se nela. Daqui a força dos caracteres, a elevação dos costumes. Em segundo lugar, essas igrejas nacionais, por isso mesmo que eram independentes, não precisavam oprimir. Eram tolerantes. A sombra delas, muito na sombra é verdade, mas tolerados em todo o caso, viviam Judeus e Mouros, raças inteligentes, industriosas, a quem a indústria e o pensamento peninsulares tanto deveram, e cuja expulsão tem quase as proporções duma calamidade nacional. Segunda consequência, de não menor alcance do que a primeira. Se a Península não era então tão católica como o foi depois, quando queimava os judeus e recebia do geral dos Jesuítas o santo e a senha da sua política, era seguramente muito mais cristã, isto é, mais caridosa e moral, como estes factos o provam.
Rasga-se porém o século XVI, tão prodigioso de revelações, e com ele aparece no mundo a Reforma, seguida por quase todos os povos de raça germânica. Esta situação cria para os povos latinos, que se conservavam aliados a Roma, uma necessidade instante, que era ao mesmo tempo um grande problema. Tornava-se necessário responder aos ataques dos protestantes, mostrar ao mundo que o espírito religioso não morrera no seio das raças latinas, que debaixo da corrupção romana havia alma e vontade. Um grito unânime de reforma saiu do meio dos representantes da ortodoxia, opondo-se ao desafio, que, com a mesma palavra, haviam lançado ao mundo católico Lutero, Zwingle, Ecolampado, Melanchthon e Calvino. Reis, povos, sacerdotes, clamavam todos reforma! Mas aqui aparecia o problema: que espécie de reforma? A opinião dos bispos e, em geral, das populações católicas pronunciava-se no sentido duma reforma liberal, em harmonia com o espírito da época, chegando muitos até a desejar uma conciliação com os protestantes: era a opinião episcopal representante das igrejas nacionais. Em Roma, porém, a solução que se dava ao problema tinha um bem diferente carácter. O ódio e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos apóstolos. Repelia-se com horror a ideia de conciliação, da mais pequena concessão. Pensava-se que era necessário fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável. Era a opinião absolutista, representante do Papado. Esta opinião (para não dizer este partido) triunfou, e foi esse triunfo uma verdadeira calamidade para as nações católicas. Nem era isso o que elas desejavam, e o que pediram e sustentaram os seus bispos, lutando indefesos durante 16 anos contra a maioria esmagadora das criaturas de Roma! Pediam uma verdadeira reforma, sincera, liberal, em harmonia com as exigências da época. O programa formulava-se em três grandes capítulos fundamentais. 1 ° Independência dos bispos, autonomia das igrejas nacionais, inauguração dum parlamentarismo religioso pela convocação amiudada dos concílios, esses estados gerais do cristianismo, superiores ao Papa e árbitros supremos dó ' mundo espiritual. 2 ° O casamento para os padres, isto é, a secularização progressiva do clero, a volta às leis da humanidade duma classe votada durante quase mil anos a um duro ascetismo, então talvez necessário, mas já no século XVI absurdo, perigoso, desmoralizador. 3 ° Restrições à pluralidade dos benefícios eclesiásticos, abuso odioso, tendente a introduzir na Igreja um verdadeiro feudalismo com todo o seu poder e desregramento. Destas reformas saía naturalmente a humanização gradual da religião, a liberdade crescente das consciências, e a capacidade para o cristianismo de se transformar dia a dia, de progredir, de estar sempre à altura do espírito humano, resultado imenso e capital que trouxe a Reforma aos povos que a seguiram. Os graves prelados, que então combatiam pelas reformas que acabo de apresentar, não desejavam, certamente, nem mesmo previam estas consequências, o próprio Lutero as não previu. Mas nem por isso as consequências deixariam de ser aquelas. Bartolomeu dos Mártires e os bispos de Cádis e Astorga não eram, seguramente, revolucionários: representavam no Concílio de Trento a última defesa e o protesto das igrejas da Península contra o ultramontanismo invasor: mas a obra deles é que era, pelas consequências, revolucionária; e, trabalhando nela, estavam na corrente e no espírito do grande e emancipador século XVI. Se houvessem alcançado essa reforma, teríamos nós talvez, Espanhóis e Portugueses, escapado à decadência. Quem pode hoje negar que é em grande parte à Reforma que os povos reformados devem os progressos morais que os colocaram naturalmente à frente da civilização? Contraste significativo, que nos apresenta hoje o mundo! As nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exactamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça. As mais decadentes são exactamente as mais católicas! Com a Reforma estaríamos hoje talvez à altura dessas nações; estaríamos livres, prósperos, inteligentes, morais... mas Roma teria caído!
Roma não queria cair. Por isso resistiu longo tempo, iludiu quanto pôde os votos das nações que reclamavam a convocação do concílio reformador. Não podendo resistir mais tempo, cede por fim. Mas como o fez? Como cedeu Roma, dominada desde então pelos Jesuítas? Estamos em Itália, meus senhores, no país de Machiavelli !... Eu não digo que Roma usasse deliberada e conscientemente duma política maquiavélica: não posso avaliar as intenções. Digo simplesmente que o parece; e que, perante a história, a política romana em toda esta questão do Concílio de Trento aparece com um notável carácter de habilidade e cálculo... muito pouco evangélicos! Roma, não podendo resistir mais à ideia do concílio, explora essa ideia em proveito próprio. Dum instrumento de paz e progresso, faz uma arma de guerra e dominação; confisca o grande impulso reformador, e fá-lo convergir em proveito do ultramontanismo. Como? Duma maneira simples: 1 °, dando só aos legados do Papa o direito de propor reformas: 2°, substituindo, ao antigo modo de votar por nações, o voto por cabeças, que lhe dá com os seus cardeais e bispos italianos, criaturas suas, uma maioria compacta e resolvida sempre a esmagar, a abafar os votos das outras nações. Basta dizer que a França, a Espanha, Portugal e os estados católicos da Alemanha nunca tiveram, juntos, número de votos superior a 60, enquanto os italianos contavam 180, e mais! Nestas condições, o concílio deixava de ser universal: era simplesmente italiano; nem italiano, romano apenas! Desde o primeiro dia se pôde ver que a causa da reforma liberal estava perdida. Provocado para essa reforma, o concílio só serviu contra ela, para a sofismar e anular!
Composta e armada assim na máquina, vejamo-la trabalhar. Para sujeitar na Terra o homem, era necessário fazê-lo condenar primeiro no Céu: por isso o concílio começa por estabelecer dogmaticamente, na sessão 5.ª, o pecado original, com todas as suas consequências, a condenação hereditária por seus merecimentos, mas só por obra e graça de J. Cristo. Muitos teólogos e alguns poucos sínodos particulares se haviam já ocupado desta matéria: nenhum concílio ecuménico a definira ainda. Um concílio verdadeiramente liberal deixava essa questão na sombra, no indefinido, não prendia a liberdade e a dignidade humanas com essa algema: o Concílio de Trento fez dessa definição o prólogo dos seus trabalhos. Convinha-lhe logo no começo condenar sem apelação a razão humana, e dar essa base ao seu edifício. Assim o fez. De então para cá, ficou dogmaticamente estabelecido no mundo católico que o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira. Perinde ac cadaver, dizem os estatutos da Companhia de. Jesus.
Na sessão 13 a confirma-se e precisa-se o dogma da eucaristia, já definido, ainda que vagamente, no 4 ° Concílio de Latrão, e vibra-se o anátema sobre quem não crer na presença real de Cristo no pão e no vinho depois da consagração. É mais um passo (e este decisivo) para fazer entrar o cristianismo no caminho da idolatria, para colocar o divino no absurdo. Poucos dogmas contribuíram tanto como este materialismo da presença real para embrutecer o novo povo, para fazer reviver nele os instintos pagãos, para lhe sofismar a razão natural! Parece que era isto o que o concílio desejava!
Na sessão 14.ª trata-se detidamente da confissão. A confissão existia há muito na Igreja, mas comparativamente livre e facultativa. No 4 ° Concílio de Latrão restringira-se já bastante essa liberdade. Na sessão 14 a de Trento é a consciência cristã definitivamente encarcerada. Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do padre! Estabelece-se a obrigação de os fiéis se confessarem em épocas certas, e exortam-se a que se confessem o mais que possam. Funda-se aqui o poder, tão temível quanto misterioso, do confessionário. Aparece um tipo singular: o director espiritual. Daí por diante há sempre na família, imóvel à cabeceira, invisível mas sempre presente, um vulto negro que separa o marido da mulher, uma vontade oculta que governa a casa, um intruso que manda mais do que o dono. Quem há aqui, espanhol ou português, que não conheça este estado deplorável da família, com um chefe secreto, em regra hostil ao chefe visível? Quem não conhece as desordens, os escândalos, as misérias introduzidas no lar doméstico pela porta do confessionário? O concílio não queria isto, decerto: mas fez tudo quando era necessário para que isto acontecesse.
Na parte disciplinar e nas relações da Igreja com o Estado predomina o mesmo espírito de absolutismo, de concentração, de invasão de todos os direitos. Na sessão 5 a tornam-se as ordens regulares independentes dos bispos, e quase exclusivamente dependentes de Roma. Que arma esta na mão do Papado, que já de si não era mais do que uma arma na mão do jesuitismo! Na sessão 13 a só o Papa, pelos seus comissários, pode julgar os bispos e os padres. É a impunidade para o clero! Na sessão 4 a põem-se restrições à leitura da Bíblia pelos seculares, restrições tais que equivalem a uma verdadeira proibição. Ora, o que é isto senão a suspeição da razão humana, condenada a pensar e a ler pelo pensamento e pelos olhos de meia dúzia de eleitos? Nas sessões 7.ª, 9.ª, 18.ª e 24.ª estabelecem-se igualmente disposições tendentes todas a sujeitar os governos, a impor aos povos a polícia romana, apagando implacavelmente por toda a parte os últimos vestígios das igrejas nacionais. Finalmente, a superioridade do Papa sobre os concílios triunfa nas sessões 23.ª e 25.ª, pela boca do jesuíta Lainez, inspirador e alma do concílio... se é permitido, ainda metaforicamente, falando dum jesuíta, empregar a palavra alma... A redacção dum catecismo vem coroar esta obra de alta política. Com esse catecismo, imposto por toda a parte e por todos os modos aos espíritos moços e simples, tratou-se de matar a liberdade no seu gérmen, de absorver as gerações nascentes, de as deformar e torturar, comprimindo-as nos moldes estreitos duma doutrina seca, formal, escolástica e subtilmente ininteligível. Se se conseguiu ou não esse resultado funesto, respondam umas poucas de nações moribundas, enfermas da pior das enfermidades, a atrofia moral!
Sim, meus senhores! essa máquina temerosa de compressão, que foi o catolicismo depois do Concílio de Trento, que podia ela oferecer aos povos? A intolerância, o embrutecimento, e depois a morte! Tomo três exemplos. Seja o primeiro a Guerra dos Trinta Anos, a mais cruel, mais friamente encarniçada, mais sistematicamente destruidora de quantas têm visto os tempos modernos, e que por pouco não aniquila a Alemanha. Essa guerra, provocada pelo partido católico, e por ele dirigida com uma perseverança infernal, mostrou bem ao mundo que abismos de Pódio podem ocultar palavras de paz e religião. O padre não dirigia somente, assistia à execução. Cada general trazia sempre consigo um director jesuíta: e esses generais chamavam-se Tilly, Picolomini, os mais endurecidos dos verdugos! Salvou então a Alemanha e a Europa a firmeza indomável de um coração tão grande quanto puro, sereno em face dessas hordas fanáticas. O verdadeiro herói (e único também) dessa guerra maldita, o verdadeiro santo desse período tenebroso, é um protestante, Gustavo Adolfo. Enquanto ao Papa, esse aplaudia a matança! O segundo exemplo é a Itália. O terror que inspirava ao Papado a criação em Itália dum estado forte, que lhe pusesse uma barreira à ambição crescente de dia para dia, tornou-o o maior inimigo da unidade italiana. É o Papado quem semeia a discórdia entre as cidades e os príncipes italianos, sempre que tentam ligar-se. É o Papado quem convida os estrangeiros a descerem os Alpes, na cruzada contra as forças nacionais, cada vez que parecem querer organizar-se. «O Papado», diz Edgard Quinet, «tem sido um ferro sagrado na ferida da Itália, que a não deixa sarar.» Hoje mesmo, se essa suspirada unidade se consumou, não foi no meio das maldições e cóleras do clero e de Roma? O único pensamento, que hoje absorve o Papado, é desmanchar aquela obra nacional, chamar sobre ela os ódios do mundo, o ferro estrangeiro, podendo ser; é assassinar a Itália ressuscitada! Estes factos são por todos sabidos. O que talvez nem todos saibam é o papel que o catolicismo representou no assassínio da Polónia. «A intolerância dos jesuítas e ultramontanos», diz Emílio de Lavelaye, «foi a causa primária do, desmembramento e queda da Polónia.» Esta nação heróica, mas pouco organizada, ou antes, pouco unificada, era uma espécie de federação de pequenas nacionalidades, com costumes e religiões diferentes. Encravada entre monarquias poderosas e ambiciosas, como a Áustria, a Rússia e a Turquia de então, a Polónia só podia viver pela liberdade política, e sobretudo pela tolerância contra o inimigo comum, os grupos autonómicos de que se compunha. A essa tolerância deveu ela, com efeito, a força e importância que teve na história da Europa até ao século XVII: católicos, gregos cismáticos, protestantes, socinianos, viveram muito tempo como irmãos, numa sociedade verdadeiramente cristã porque era verdadeiramente tolerante. Um dia, porém, os jesuítas, lá do centro de Roma, olharam para a Polónia como para uma boa presa. Aquela nação era efectivamente um escândalo para os bons padres. Tanto intrigaram que em 1570 tinham já logrado introduzir-se na Polónia: o rei Estêvão Bathory concede-lhes, com uma culpável imprudência, a Universidade de Wilna. Senhores do ensino, e em breve das consciências da nobreza católica, os jesuítas são um poder: começam as perseguições religiosas. Em 1548, João Casimiro, que antes de ser rei fora cardeal e jesuíta, quer obrigar os camponeses ruténios, sectários do cisma grego, a converterem-se ao catolicismo. Estes levantam-se, unem-se aos cossacos, também do rito grego, e começa uma guerra formidável, cujo resultado foi separarem-se cossacos e ruténios da federação polaca, dando-se à Rússia, em cujas mãos se tornaram uma arma terrível sempre apontada ao coração da Polónia. Nunca esta nação teve inimigos tão encarniçados como os cossacos! Sem eles, a Polónia, enfraquecida entre vizinhos formidáveis, devia cair, e caiu efectivamente. A partilha espoliadora de 1772 não fez mais do que confirmar um facto já antigo, a nulidade da nação polaca.
Assim pois, meus senhores, o catolicismo dos últimos séculos, pelo seu princípio, pela sua disciplina, pela sua política, tem sido no mundo o maior inimigo das nações, e verdadeiramente o túmulo das nacionalidades. «O antro da Esfinge», disse dele um poeta filósofo, «reconhece-se logo à entrada pelos ossos dos povos devorados.»
E a nós, Espanhóis e Portugueses, como foi que o catolicismo nos anulou? O catolismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a expulsão dos judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha: a perseguição dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais: a Inquisição passa os mares, e, tornando-nos hostis os índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento duma colonização sólida e duradoura: na América despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo de morte; o terror religioso, finalmente, corrompe o carácter nacional, e faz de duas nações generosas hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização. Com o jesuitismo desaparece o sentimento cristão, para dar lugar aos sofismas mais deploráveis a que jamais desceu a consciência religiosa: métodos de ensino, ao mesmo tempo brutais e requintados, esterilizam as inteligências, dirigindo-se à memória, com o fim de matarem o pensamento inventivo, e alcançam alhear o espírito peninsular do grande movimento da ciência moderna, essencialmente livre e criadora: a educação jesuítica faz das classes elevadas máquinas inteligentes e passivas; do povo, fanáticos corruptos e cruéis: a funesta moral jesuítica, explicada (e praticada) pelos seus casuístas, com as suas restrições mentais, as suas subtilezas, os seus equívocos, as suas condescendências, infiltra-se por toda a parte, como um veneno lento, desorganiza moralmente a sociedade, desfaz o espírito de família, corrompe as consciências com a oscilação contínua da noção do dever, e aniquila os caracteres, sofismando-os, amolecendo-os: o ideal da educação jesuítica é um povo de crianças mudas, obedientes e imbecis, realizou-o nas famosas -missões do Paraguai; o Paraguai foi o reino dos céus da Companhia de Jesus; perfeita ordem, perfeita devoção; uma coisa só faltava, a alma, isto é, a dignidade e a vontade, o que distingue o homem da animalidade! Eram estes os benefícios que levávamos às raças selvagens da América, pelas mãos civilizadoras dos padres da Companhia! Por isso o génio livre popular decaiu, adormeceu por toda a parte: na arte, na literatura, na religião. Os santos da época já não têm aquele carácter simples, ingénuo, dos verdadeiros santos populares: são frades beatos, são jesuítas hábeis. Os sermonários e mais livros de devoção, não sei por que lado sejam mais vergonhosos; se pela nulidade das ideias, pela baixeza do sentimento, ou pela puerilidade ridícula do estilo. Enquanto à arte e literatura, mostrava-se bem clara a decadência naquelas massas estúpidas de pedra da arquitectura jesuítica, e na poesia convencional das academias, ou nas odes ao divino e jaculatórias fradescas. O génio popular, esse morrera às mãos do clero, como com tanta evidência o deixou demonstrado nos seus recentes livros, tão cheios de novidades, sobre a literatura portuguesa, o Sr. Teófilo Braga. Os costumes saídos desta escola sabemos nós o que foram. Já citei a Arte de Furtar, os romances picarescos, as farsas populares, o teatro espanhol, os escritos de D. Francisco Manuel e do Cavaleiro de Oliveira. Na falta destes documentos, bastava-nos a tradição, que ainda hoje reza dos escândalos dessa sociedade aristocrática e clerical! Essa funesta influência da direcção católica não é menos visível no mundo político. Como é que o absolutismo espiritual podia deixar de reagir sobre o espírito do poder civil? O exemplo do despotismo vinha de tão alto! os reis eram tão religiosos! Eram por excelência os reis católicos, fidelíssimos. Nada forneceu pelo exemplo, pela autoridade, pela doutrina, pela instigação, um tamanho ponto de apoio ao poder absoluto como o espírito católico e a influência jesuítica. Nesses tempos santos, os verdadeiros ministros eram os confessores dos reis. A escolha do confessor era uma questão de Estado. A paixão de dominar, e o orgulho criminoso de um homem, apoiavam-se na palavra divina. A teocracia dava a mão ao despotismo. Essa direcção via-se claramente na política externa. A política, em vez de curar dos interesses verdadeiros do povo, de se inspirar de um pensamento nacional, traía a sua missão, fazendo-se instrumento da política católica romana, isto é, dos interesses, das ambições de um estrangeiro. D. Sebastião, o discípulo dos jesuítas, vai morrer nos areais de África pela fé católica, não pela nação portuguesa. Carlos V, Filipe II, põem o mundo a ferro e fogo, porquê? Pelos interesses espanhóis? Pela grandeza de Espanha? Não: pela grandeza e pelos interesses de Roma! Durante mais de 70 anos, a Espanha, dominada por estes dois inquisidores coroados, dá o melhor do seu sangue, da sua riqueza, da sua actividade, para que o Papa desse outra vez leis à Inglaterra e à Alemanha. Era essa a política nacional desses reis famosos: eu chamo a isto simplesmente trair as nações.
Tal é uma das causas, se não a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas raízes. Feriu o homem no que há de mais íntimo, nos pontos mais essenciais da vida moral, no crer, no sentir – no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais secretas. Essa transformação da alma peninsular fez-se em tão íntimas profundidades que tem escapado às maiores revoluções; passam por cima dessa região quase inacessível, superficialmente, e deixaram-na na sua inércia secular, Há em todos nós, por mais modernos que queiramos ser, há lá oculto, dissimulado, mas não inteiramente morto, um beato, um fanático ou um jesuíta! Esse moribundo que se ergue dentro em nós é o inimigo, é o passado. É preciso enterrá-lo por uma vez, e como ele o espírito sinistro do catolicismo de Trento.
Esta causa actuou principalmente sobre a vida moral: a segunda, o absolutismo, apesar de se reflectir no estado dos espíritos, actuou principalmente na vida política e social. A história da transformação das monarquias peninsulares é longa, e, para a minha pouca ciência, obscura e até certo ponto desconhecida: não a poderia eu fazer aqui. Basta dizer que o carácter dessas monarquias durante a Idade Média contrasta singularmente com o que lhe encontramos no século XVI e nos seguintes. Os reis então não eram absolutos; e não o eram porque a vida política local, forte e vivaz, não só não lhes deixava um grande círculo de acção, mas ainda, dentro desse mesmo círculo, lhes opunha à expansão da autoridade embaraços e uma contínua vigilância. Os privilégios da nobreza e do clero, por um lado, e, pelo outro, as instituições populares, os municípios, as comunas, equilibravam com mais ou menos oscilações o peso da coroa. Para as questões sumas, para os momentos de crise, lá estavam as Cortes, onde todas as classes sociais tinham representantes e voto. A liberdade era então o estado normal da Península.
No século XVI tudo isto mudou. O poder absoluto assenta-se sobre a ruína das instituições locais. Abaixou a nobreza, é verdade, mas só em proveito seu: o povo pouco lucrou com essa revolução. O que é certo é que perdeu a liberdade. A vida municipal afrouxa gradualmente: as comunas espanholas, depois dum sangrento protesto, caem exânimes, aos pés dum rei, que nem sequer era inteiramente espanhol. As instituições locais, cerceadas por todos os lados, sentem faltar-lhes em volta o ar, e o chão debaixo de si. Quem poderá jamais contar essas invasões surdas, insensíveis do poder real no terreno do povo, essas lutas subterrâneas, as abdicações sucessivas da vontade nacional nas mãos de um homem. as resistências infelizes, a longa e cruel história do desaparecimento dos foros populares? É uma história tão triste quanto obscura, que ninguém fez nem fará jamais! Vê-se o desfecho do drama: os incidentes escapam-nos. Mas ao lado dessa luta surda houve outra manifesta, cuja história se erguerá sempre como um espectro vingador, para acusar a realeza. Essa luta é a grande guerra communera das cidades espanholas. Vencidas, esmagadas pela força, as cidades espanholas encontraram um herói, de cujo peito saiu ardente um protesto, que será eterno como a condenação de quem o provocou. Eis aqui o que D. Juan de Padilla, chefe dos communeros, escrevia à sua cidade de Toledo, horas antes de ser decapitado. «A ti, cidade de Toledo, que és a coroa de Espanha, e a luz do mundo, que já no tempo dos Godos eras livre, e que prodigalizaste o teu sangue para assegurar a tua liberdade e a das cidades tuas irmãs, Juan de Padilha, teu filho legítimo, te faz saber que pelo sangue do seu corpo mais uma vez vão ser renovadas as tuas antigas vitórias...» A cabeça de Padilha rolou, e com ele, decapitada também, caiu a antiga liberdade municipal. A centralização monárquica, pesada, uniforme, caiu sobre a Península como a pedra dum túmulo. A respiração de milhares de homens suspendeu-se, para se concentrar toda no peito de um homem excepcional, de quem o acaso do nascimento fazia um deus. Se, ao menos, esse deus fosse propício, bom, providencial! Mas a centralização do absolutismo, prostrando o povo, corrompia ao mesmo tempo o rei. D. João III, esse rei fanático e de ruim condição, Filipe II, o demónio do Meio-Dia, inquisidor e verdugo das nações, Filipe III, Carlos IV, João V, Afonso VI, devassos uns, outros desordeiros, outros ignorantes e vis, são bons exemplos da realeza absoluta, enfatuada até ao vício, até ao crime, do orgulho do próprio poder, possessa daquela loucura cesariana com que a Natureza faz expiar aos déspotas a desigualdade monstruosa, que os põe como que fora da Humanidade. A tais homens, sem garantias, sem inspecção, confiaram as nações cegamente os seus destinos! Se Filipe II não fosse absoluto, jamais teria podido tentar o seu absurdo projecto de conquistar a Inglaterra, não teria feito sepultar nas águas do oceano, com a Invencível Armada, milhares de vidas e um capital prodigioso inteiramente perdido. Se D. Sebastião não fosse absoluto, não teria ido enterrar em Alcácer Quibir a nação portuguesa, as últimas esperanças da pátria.
Outras monarquias, a francesa por exemplo, sujeitavam o povo, mas ajudavam por outro lado o seu progresso. Aristocráticas pelas raízes, tinham pelos frutos muito de populares. A burguesia, a quem estava destinado o futuro, erguia-se, começava a ter voz. As nossas monarquias, porém, tiveram um carácter exclusivamente aristocrático: eram-no pelo princípio, e eram-no pelos resultados. Governava-se então pela nobreza e para a nobreza. As consequências sabemo-las nós todos. Pelos morgados, vinculou-se a terra, criaram-se imensas propriedades. Com isto, anulou-se a classe dos pequenos proprietários; a grande cultura sendo então impossível, e desaparecendo gradualmente a pequena, a agricultura caiu; metade da Península transformou-se numa charneca: a população decresceu, sem que por isso se aliviasse a miséria. Por outro lado, o espírito aristocrático da monarquia, opondo-se naturalmente aos progressos da classe média, impediu o desenvolvimento da burguesia, a classe moderna por excelência, civilizadora e iniciadora, já na indústria, já nas ciências, já no comércio. Sem ela, o que podíamos nós ser nos grandes trabalhos com que o espírito moderno tem transformado a sociedade, a inteligência e a natureza? O que realmente fomos; nulos, graças à monarquia aristocrática!,Essa monarquia, acostumando o povo a servir, habituando-o à inércia de quem espera tudo -de cima, obliterou o sentimento instintivo da liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a iniciativa; quando mais tarde lhe deram a liberdade, não a compreendeu; ainda hoje a não compreende, nem sabe usar dela. As revoluções podem chamar por ele, sacudi-lo com força: continua dormindo sempre o seu sono secular! A estas influências deletérias, a estas dias causas principais de decadência, uma moral e outra política, junta-se uma terceira, de carácter sobretudo económico: as conquistas. Há dois séculos que os livros, as tradições e a memória dos homens andam cheios dessa epopeia guerreira, que os povos peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaram-nos com essas histórias: atacá-Ias é quase um sacrilégio. E todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores causas da nossa decadência. É necessário dizê-lo, em que pese aos nossos sentimentos mais caros de patriotismo tradicional. Tanto mais que um erro económico não é necessariamente uma vergonha nacional. No ponto de vista heróico, quem pode negá-lo? Foi esse movimento das conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante, e por certos lados sublime, da alma intrépida peninsular. A moralidade subjectiva desse movimento é indiscutível perante a história: são do domínio da poesia, e sê-lo-ão sempre, acontecimentos que puderam inspirar a grande alma de Camões. A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência. Quem domina não é já a musa heróica da epopeia; é a economia política, Calíope dum mundo novo, se não tão belo, pelo menos mais justo e lógico do que o antigo. Ora, é à luz da economia política que eu condeno as conquistas e o espírito guerreiro. Quisemos refazer os tempos heróicos da idade moderna: enganámo-nos; não era possível; caímos. Qual é, com efeito, o espírito da idade moderna? É o espírito de trabalho e de indústria: a riqueza e a vida das nações têm de se tirar da actividade produtora, e não já da guerra esterilizadora. O que sai da guerra não só acaba cedo, mas é além disso um capital morto, consumido sem resultado. E necessário que o trabalho, sobretudo a indústria agrícola, o fecunde, lhe dê vida. Domina todo este assunto uma lei económica, formulada por Adão Smith, um dos pais da ciência, nas seguintes palavras: «O capital adquirido pelo comércio e pela guerra só se torna real e produtivo quando se fixa na cultura da terra e nas outras indústrias.» Vejamos o que tem feito a Inglaterra com a índia, com a Austrália, e com o comércio do mundo. Explora, combate: mas a riqueza adquirida fixa-a no seu solo, pela sua poderosa indústria, e pela sua agricultura, talvez a mais florescente do mundo. Por isso a prosperidade da Inglaterra há dois séculos tem sido a admiração e quase a inveja das nações. Pelo contrário, nós, Portugueses e Espanhóis, que destinos demos às prodigiosas riquezas extorquidas aos povos estrangeiros? Respondam a nossa indústria perdida, o comércio arruinado, a população diminuída, a agricultura decadente, e esses desertos da Beira, do Alentejo, da Estremadura espanhola, das Castelas, onde não se encontra uma árvore, um animal doméstico, uma face humana!
Um exemplo, o da agricultura portuguesa antes e depois do século XVI, porá em evidência, com factos significativos, essa influência perniciosa do espírito de conquista no mundo económico. Esses factos são extraídos de três obras, cuja autoridade é incontestável: a Memória histórica de Alexandre de Gusmão sobre a agricultura portuguesa; o livro de Camillo Pallavicini La economia agraria del Portogallo; e a História da Agricultura em Portugal, pelo Sr. Rebelo da Silva. Uma coisa que impressiona quem estuda os primeiros séculos da monarquia portuguesa é o carácter essencialmente agrícola dessa sociedade. Os cognomes dos reis, o Povoador, o Lavrador, já por si são altamente significativos. No meio das guerras, e apesar da imperfeição das instituições, a população crescia, e a abundância generalizava-se. A arborização do país desenvolvia-se, a charneca recuava diante do trabalho. As armadas, que mais tarde dominaram os mares, saíram das matas semeadas por D. Dinis. No reinado de D. Fernando era Portugal um dos países que mais exportavam. A Castela, a Galiza, a Flandres, a Alemanha, forneciam-se quase exclusivamente de azeite português; a nossa prosperidade agrícola era suficiente para abastecer tão vastos mercados. O comércio dos cereais era considerável. No século XV vinham os navios venezianos a Lisboa e aos portos do Algarve, trazendo as mercadorias do Oriente, e levando em troca cereais, peixe salgado e frutas secas, que espalhavam pela Dalmácia e por toda a Itália. Sustentávamos também um activo comércio com a Inglaterra. As classes populares desenvolviam-se pela abundância e o trabalho, a população crescia. No tempo de D. João II chegara a população a muito perto de três milhões de habitantes... Basta comparar este algarismo com o da população em 1640, que escassamente excedia um milhão, para se conhecer que uma grande decadência se operou durante este intervalo!
Dera-se, com efeito, durante o século XVI, uma deplorável revolução nas condições económicas da sociedade portuguesa, revolução sobretudo devida ao novo estado de coisas criadas pelas conquistas. O proprietário, o agricultor, deixam a charrua e fazem-se soldados, aventureiros: atravessam o oceano, à procura de glória, de posição mais brilhante ou mais rendosa. Atraída pelas riquezas acumuladas nos grandes centros, a população rural aflui para ali, abandona os campos, e vem aumentar nas capitais o contingente da miséria, da domesticidade ou do vício. A cultura diminui gradualmente. Com essa diminuição, e com a depreciação relativa dos metais preciosos pela afluência dos tesouros do Oriente e América, os cereais chegam a preços fabulosos. O trigo, que em 1460 valia 10 réis por alqueire, tem subido, em 1520, a 20 réis, 30 e 35! Por isso o preço nos mercados estrangeiros, nem sequer pode cobrir o custo originário: a concorrência doutras nações, que produziam mais barato, esmaga-nos. Não só deixamos de exportar, mas passamos a importar: «Do reinado de D. Manuel em diante», diz Alexandre de Gusmão, «somos sustentados pelos estrangeiros.» Esse sustento podiam-no pagar os grandes, que a Índia e o Brasil enriqueciam. A multidão, porém, morria de fome. A miséria popular era grande. A esmola à portaria dos conventos e casas fidalgas passou a ser uma instituição. Mendigavam os bandos pelas estradas. A tradição, num símbolo terrivelmente expressivo, apresenta-nos Camões, o cantor dessas glórias que nos empobreciam, mendigando para sustentar a velhice triste e desalentada. É uma imagem da nação. As crónicas falam-nos de grandes fomes. Por tudo isto, decrescia a olhos vistos a população. Que remédio se procura a este mal? um mal incomparavelmente maior: a escravidão! Tenta-se introduzir o trabalho servil nas culturas, com escravos vindos da África! Felizmente não passou de tentativa. Era a transformação dum país livre e civilizado numa coisa monstruosa, uma oligarquia de senhores de roça! A barbaridade dos devastadores da América, transportada para o meio da Europa! Com estes elementos o que se podia esperar da indústria? Uma decadência total. Não se fabrica, não se cria: basta o ouro do Oriente para pagar a indústria dos outros, enriquecendo-os, instigando-os ao trabalho produtivo, e ficando nós cada vez mais pobres, com as mãos cheias de tesouros! Importávamos tudo: de Itália, sedas, veludos, brocados, massas; da Alemanha, vidro; de França, panos; de Inglaterra e Holanda, cereais, lãs, tecidos. Havia então uma única indústria nacional... a Índia! Vai-se à Índia buscar um nome e uma fortuna, e volta-se para gozar, dissipar esterilmente. A vida concentra-se na capital. Os nobres deixam os campos, os solares dos seus maiores, onde viviam em certa comunhão com o povo, e vêm para a corte brilhar, ostentar... e mendigar nobremente. O fidalgo faz-se cortesão: o homem do povo, não podendo já ser trabalhador, faz-se lacaio: a libré é o selo da sua decadência. A criadagem duma casa nobre era um verdadeiro estado. O luxo da nobreza tinha alguma coisa de oriental. Ao luxo desenfreado, ao vício, à corrupção, mal dista um passo. A paixão do jogo estendeu-se terrivelmente: jogava-se nas tavolagens, e jogava-se nos palácios. O ócio, acendendo as imaginações, levava pelo galanteio às intrigas amorosas, às aventuras, ao adultério, e arruinava a família. Lisboa era uma capital de fidalgos ociosos, de plebeus mendigos, e de rufiões.
Ao longe, fora do país, foram outras as consequências do espírito de conquista, mas igualmente funestas. A escravatura (além de todas as suas deploráveis consequências morais) esterilizou pelo trabalho servil. Só o trabalho livre é fecundo: só os resultados do trabalho livre são duradouros. Das colónias que os Europeus fundaram no Novo Mundo quais prosperaram? Quais ficaram estacionárias? Prosperaram na razão directa do trabalho livre: o Norte dos Estados Unidos mais do que o Sul: os Estados Unidos mais do que o Brasil. E essa jovem Austrália, cuja população duplica todos os 10 anos, que já exporta para a Europa os seus produtos, cujas instituições são já hoje modelo e inveja para os povos civilizados, e que será antes de um século uma das maiores nações do mundo, a que deve ela essa prosperidade fenomenal, senão ao influxo maravilhoso do trabalho livre, numa terra que ainda não pisou o pé dum homem que se não dissesse livre? A Austrália tem feito em menos de 100 anos de liberdade o que o Brasil não alcançou com mais de três séculos de escravatura! Fomos nós, foram os resultados do nosso espírito guerreiro, quem condenou o Brasil ao estacionamento, quem condenou à nulidade toda essa costa de África, em que outras mãos podiam ter talhado à larga uns poucos de impérios! Esse espírito guerreiro, com os olhos fitos na luz de uma falsa glória, desdenha, desacredita, envilece o trabalho manual – o trabalho manual, a força das sociedades modernas, a salvação e a glória das futuras... Mas um fantástico idealismo perturba a alma do guerreiro: não distingue entre interesse honroso e interesse vil: só as -grandes acções de esforço heróico são belas a seus olhos: para ele a indústria pacífica é só própria de mãos servis. A tradição, que nos apresenta D. João de Castro, depois duma campanha em África, retirando-se à sua quinta de Sintra, onde se dava àquela estranha e nova agricultura de cortar as árvores de fruto, e plantar em lugar delas árvores silvestres, essa tradição deu-nos um perfeito símbolo do espírito guerreiro no seu desprezo pela indústria. Portugal, o Portugal das conquistas, é esse guerreiro altivo, nobre e fantástico, que voluntariamente arruína as suas propriedades, para maior glória do seu absurdo idealismo. E já que falei em D. João de Castro, direi que poucos livros têm feito tanto mal ao espírito português como aquela biografia do herói escrita por Jacinto Freire. J. Freire, que era padre, que nunca vira a índia, e que ignorava tão profundamente a política como a economia política, fez da vida e feitos de D. João de Castro, não um estudo de ciência social, mas um discurso académico, literário e muito eloquente, seguramente, mas enfático, sem crítica, e animado por um falso ideal de glória à antiga, glória clássica, através do qual nos faz ver continuamente as acções do seu herói. Há dois séculos que lemos todos o D. João de Castro, de Jacinto Freire, e acostumámo-nos a tomar aquela fantasia de retórico pelo tipo do verdadeiro herói nacional. Falseámos com isto o nosso juízo, e a crítica. duma época importante. É preciso que se saiba que a verdadeira glória moderna não é aquela: é exactamente o contrário daquela. Uma só coisa há ali a aproveitar como exemplo: é a nobreza de alma daquele homem magnânimo: mas essa nobreza de alma deve ser aplicada pelos homens modernos a outros cometimentos, e dum modo muito diverso. Foi aquele género de heroísmo tão apregoado por J. Freire que nos arruinou!
Como era possível, com as mãos cheias de sangue, e os corações cheios de orgulho, iniciar na civilização aqueles povos atrasados, unir por interesses e sentimentos os vencedores e os vencidos, cruzar as raças, e fundar assim, depois do domínio momentâneo da violência, o domínio duradouro e justo da superioridade moral e do progresso? As conquistas sobre as nações atrasadas, por via de regra, não são justas nem injustas. Justificam-se ou condenam-nas os resultados, o uso que mais tarde se faz do domínio estabelecido pela força. As conquistas romanas são hoje justificadas pela filosofia da história, porque criaram uma civilização superior àquela de que viviam os povos conquistados. A conquista da índia pelos Ingleses é justa, porque é civilizadora. A conquista da índia pelos Portugueses, da América pelos Espanhóis, foi injusta, porque não civilizou. Ainda quando fossem sempre vitoriosas as nossas armas, a índia ter-nos-ia escapado, porque sistematicamente alheávamos os espíritos, aterrávamos as populações, cavávamos pelo espírito religioso e aristocrático um abismo entre a minoria dos conquistadores e a maioria dos vencidos. Um dos primeiros benefícios, que levámos àqueles povos, foi a Inquisição: os Espanhóis fizeram o mesmo na América. As religiões indígenas não eram só escarnecidas, vilipendiadas: eram atrozmente perseguidas. O efeito moral dos trabalhos dos missionários (tantos deles santamente heróicos!) era completamente anulado por aquela ameaça constante do terror religioso: ninguém se deixa converter por uma caridade que tem atrás de si uma fogueira! A ferocidade dos Espanhóis na América é uma coisa sem nome, sem paralelo nos anais da bestialidade humana. Dois impérios florescentes desaparecem em menos de 60 anos! em menos de 60 anos são destruídos dez milhões de homens! Dez milhões! Estes algarismos são trágicos: não precisam de comentários. E, todavia, poucas raças se têm apresentado aos conquistadores tão banais, ingénuas, dóceis, prontas a receberem com o coração a civilização que se lhes impunha com as armas! Bartolomeu de Ias Casas, bispo de Chiapa, um verdadeiro santo, protestou em vão contra aquelas atrocidades: consagrou a sua vida evangélica à causa daqueles milhões de infelizes: por duas vezes passou à Europa, para advogar solenemente a causa deles perante Carlos V. Tudo em vão! A obra da destruição era fatal: tinha de se consumar, e consumou-se.
Há, com efeito, nos actos condenáveis dos povos peninsulares, nos erros da sua política, e na decadência que os colheu, alguma coisa de fatal: é a lei de evolução histórica, que inflexível e impassivelmente tira as consequências dos princípios uma vez introduzidos na sociedade. Dado o catolicismo absoluto, era impossível que se lhe não seguisse, deduzindo-se dele, o absolutismo monárquico. Dado o absolutismo, vinha necessariamente o espírito aristocrático, com o seu cortejo de privilégios, de injustiças, com o predomínio das tendências guerreiras sobre as industriais. Os erros políticos e económicos saíam daqui naturalmente; e de tudo isto, pela transgressão das leis da vida social, saía naturalmente também a decadência sob todas as formas.
E essas falsas condições sociais não produziram somente os efeitos que apontei. Produziram um outro, que, por ser invisível e insensível, nem por isso deixa de ser o mais fatal. É o abatimento, a prostração do espírito nacional, pervertido e atrofiado por uns poucos de séculos da mais nociva educação. As causas, que indiquei, cessaram em grande parte: mas os efeitos morais persistem, e é a eles que devemos atribuir a incerteza, o desânimo, o mal-estar da nossa sociedade contemporânea. A influência do espírito católico, no seu pesado dogmatismo, deve ser atribuída esta indiferença universal pela filosofia, pela ciência, pelo movimento moral e social moderno, este adormecimento sonambulesco em face da revolução do século XIX, que é quase a nossa feição característica e nacional entre os povos da Europa. Já não cremos, certamente, com o ardor apaixonado e cego de nossos avós, nos dogmas católicos: mas continuamos a fechar os olhos às verdades descobertas pelo pensamento livre.
Se a Igreja nos incomoda com as suas exigências, não deixa por isso também de nos incomodar a Revolução com as lutas. Fomos os Portugueses intolerantes e fanáticos dos séculos XVI, XVII e XVIII: somos agora os Portugueses indiferentes do século XIX. Por outro lado, se o poder absoluto da monarquia acabou, persiste a inércia política das populações, a necessidade (e o gosto talvez) de que as governem, persistem a centralização e o militarismo, que anulam, que reduzem ao absurdo as liberdades constitucionais. Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma a servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase que se equivalem. Se a velha monarquia desapareceu, conservou-se o velho espírito monárquico: é quanto basta para não estarmos muito melhor do que nossos avós. Finalmente, do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos duma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas!
Dessa educação, que a nós mesmos demos durante três séculos, provêm todos os nossos males presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade a nossa história,
Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória dos nossos avós: memoremos piedosamente os actos deles: mas não os imitemos. Não sejamos, à luz do século XIX, espectros a que dá uma vida emprestada o espírito do século XVI. A esse espírito moral oponhamos francamente o espírito moderno. Oponhamos ao catolicismo, não a indiferença ou uma fria negação, mas a ardente afirmação da alma nova, a consciência livre, a contemplação directa do divino pelo humano (isto é, a fusão do divino e do humano), a filosofia, a ciência, e a crença no progresso, na renovação incessante da Humanidade pelos recursos inesgotáveis do seu pensamento, sempre inspirado. Oponhamos à monarquia centralizada, uniforme e impotente, a federação republicana de todos os grupos autonómicos, de todas as vontades soberanas, alargando e renovando a vida municipal, dando-lhe um carácter radicalmente democrático, porque só ela é a base e o instrumento natural de todas as reformas práticas, populares, niveladoras. Finalmente, à inércia industrial oponhamos a iniciativa do trabalho livre, a indústria do povo, pelo povo, e para o povo, não dirigida e protegida pelo Estado, mas espontânea, não entregue à anarquia cega da concorrência, mas organizada duma maneira solidária e equitativa, operando assim gradualmente a transição para o novo mundo industrial do socialismo, a quem pertence o futuro. Esta é a tendência do século: esta deve também ser a nossa. Somos uma raça decaída por ter rejeitado o espírito moderno: regenerar-nos-emos abraçando francamente esse espírito. O seu nome é Revolução: revolução não quer dizer guerra, mas sim paz: não quer dizer licença, mas sim ordem, ordem verdadeira pela verdadeira liberdade. Longe de apelar para a insurreição, pretende preveni-la, torná-la impossível: só os seus inimigos, desesperando-a, a podem obrigar a lançar mãos das armas. Em si, é um verbo de paz, porque é o verbo humano por excelência.
Meus senhores: há 1800 anos apresentava o mundo romano um singular espectáculo. Uma sociedade gasta, que se aluía, mas que, no seu aluir-se, se debatia, lutava, perseguia, para conservar os seus privilégios, os seus preconceitos, os seus vícios, a sua podridão: ao lado dela, no meio dela, uma sociedade nova, embrionária, só rica de ideias, aspirações e justos sentimentos, sofrendo, padecendo, mas crescendo por entre os padecimentos. A ideia desse mundo novo impõe-se gradualmente ao mundo velho, converte-o, transforma-o: chega um dia em que o elimina, e a Humanidade conta mais uma grande civilização.
Chamou-se a isto o Cristianismo.
Pois bem, meus senhores: o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno.
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