“(A) linguagem sofre frequentes abusos no discurso figurativo. Dado que a graça e a fantasia
encontram melhor acolhimento no mundo do que a seca verdade e o conhecimento genuíno, os
discursos figurativos e a alusão dificilmente serão considerados uma imperfeição ou um abuso da
linguagem.
Admito que, nos discursos em que procuramos prazer e diversão em vez de informação e instru-
ção, é difícil que os ornamentos desse género passem por falhas. No entanto, se queremos falar
das coisas como elas são, temos de reconhecer que toda a arte da retórica, exceptuando aquilo que
respeita à ordem e à clareza, que todas as aplicações artificiais e figurativas das palavras criadas
pela eloquência servem apenas para insinuar ideias erradas, para excitar as paixões, e assim para
nos conduzir ao erro.
De facto, essas aplicações são perfeitos logros, e por esta razão, por muito louvável ou aceitável
que a retórica possa parecer em discursos e declamações populares, é óbvio que elas têm de ser
completamente evitadas em todos os discursos que pretendam informar ou instruir. E onde a ver-
dade e o conhecimento interessam, tais aplicações têm de ser consideradas uma grande falta (...).
Quantas e que aplicações são essas, é algo que seria supérfluo indicar aqui. Os livros de retórica
que abundam no mundo instruirão aqueles que se queiram informar. Só não posso deixar de ob-
servar que a humanidade se preocupa muito pouco com a preservação e o avanço da verdade e do
conhecimento, pois as artes da falácia são cultivadas e preferidas.
É evidente que os homens gostam muito de enganar e de ser enganados, já que a retórica, esse
poderoso instrumento do erro e do logro, tem os seus professores reconhecidos, é ensinada pu-
blicamente e teve sempre uma grande reputação. E não duvido de que o facto de eu a criticar tan-
to será considerado uma grande ousadia, ou mesmo uma brutalidade. A eloquência, à semelhança
das mulheres, tem demasiados encantos para que tolere as críticas. E é inútil criticar estas artes
do logro, com as quais os homens sentem prazer em ser enganados. John Locke, Um Ensaio sobre o
Entendimento Humano.
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